Grandes belezas do Brasil, Chico Buarque e Caetano Veloso tal como foram vistos ao vivo em 2022

No meu balanço do ano de 2022, há dois shows incríveis: Que Tal um Samba?, de Chico Buarque (Foto/Divulgação), e Meu Coco, de Caetano Veloso (Foto/Divulgação). A turnê de Chico teve estreia nacional em João Pessoa, nos dias seis e sete de setembro. O artista divide o palco com a cantora Mônica Salmaso. A turnê de Caetano começou em abril por Belo Horizonte. Vi o show no Recife e em João Pessoa, nos dias 21 e 23 de outubro. Nesta segunda-feira (26), em caráter retrospectivo, reposto os textos que publiquei quando assisti aos shows.

QUE TAL UM SAMBA?, Chico Buarque com Mônica Salmaso

Um dia desses, não faz muito tempo, ouvi de Caetano Veloso que há coisas e há pessoas que fazem a gente acreditar que o Brasil pode dar certo. Conversávamos sobre a gravação que Caetano fez de Nanã, sobre seu autor, Moacir Santos, sobre o maestro Letieres Leite, que a Covid levou. Lembrei muito dessa conversa vendo Chico Buarque e Mônica Salmaso no palco do Teatro Pedra do Reino, em João Pessoa, por onde começou Que Tal um Samba?, a nova turnê de Chico.

Quatro anos depois de Caravanas, Chico Buarque volta aos palcos, tendo Mônica Salmaso como convidada muito especial. O set list era guardado em segredo. Com a minha bola de cristal, fiquei pensando nas gravações em que Chico juntou sua voz a vozes femininas. Noite dos Mascarados (com Jane), Sem Fantasia (com Cristina, depois com Maria Bethânia), João e Maria (com Nara Leão), Maninha (com Miúcha), Biscate (com Gal Costa), Imagina (com a própria Mônica Salmaso).

Estão todas lá. Lindas. Comoventes. Arrebatadoras. Dos remotos anos 1960 – Sem Fantasia, Noite dos Mascarados – até os anos 2000 (Imagina). Sem Fantasia veio na primeira parte do show. A voz da mulher. A voz do homem. As duas vozes no final. Noite dos Mascarados ficou para o bis. Uma marchinha carnavalesca. As duas, fortemente evocativas de um tempo em que Chico, um jovem de vinte e poucos anos, surgiu para fazer parte do grupo dos nossos melhores compositores populares.

Maninha traz a lembrança de Miúcha, irmã de Chico que não está mais entre nós. Ela e ele gravaram num dos dois discos que Antônio Carlos Jobim fez com Miúcha. Na Paraíba, mais do que em qualquer outro lugar, João e Maria remete a Sivuca, que, em 1947, compôs a melodia dessa valsa que só ganharia a letra de Chico 30 anos mais tarde. Imagina, primeira música composta por Tom Jobim, não poderia ficar de fora. Afinal, foi com Mônica que Chico fez a gravação para o álbum Carioca, lançado em 2006.

Tom Jobim é lembrado em três momentos do show. Primeiro, quando Mônica recebe Chico no palco, enquanto canta Paratodos. Foi nessa música que Chico chamou Tom, um dos seus mestres, de Maestro Soberano. Depois, em Imagina. Por último, em Sabiá, melodia de Jobim, letra de Chico. Sabiá, a lindíssima canção de exílio que foi vaiada, em 1968, pelo público do FIC. O público preferiu o imediatismo dos versos de Geraldo Vandré em Caminhando. O momento político exigiu que fosse assim.

Quem abre o show é Mônica Salmaso. Faz seis números antes da entrada de Chico. Todos Juntos, dos Saltimbancos, é a primeira música. Traz logo uma mensagem para esse tempo estranho em que estamos vivendo: “Todos juntos somos fortes/Não há nada pra temer”. Há outras mensagens que vão costurando o programa: a ameaça do homem na letra de Passaredo e a notícia positiva na letra de Bom Tempo. Há Mar e Lua, uma joia pouco lembrada, e esse primor que é Beatriz, da parceria de Chico com Edu Lobo.

Na primeira sequência em que Chico Buarque e Mônica Salmaso ficam juntos no palco, temos O Velho Francisco, da década de 1980, e Sinhá (parceria com João Bosco), que, com pouco mais de 10 anos, já é um clássico. Sozinho, Chico resgata Desalento (do álbum Construção) e Sob Medida, que Simone gravou há mais de 40 anos. Nina, Blues Pra Bia e Tipo um Baião ainda são bem recentes. Injuriado e Uma Canção Desnaturada (da Ópera do Malandro) trazem Mônica de volta ao palco.

Morro Dois Irmãos e Futuros Amantes falam do Rio de Janeiro. Assentamento, da questão agrária. O Meu Guri e As Caravanas, das nossas desigualdades, do nosso apartheid. É quando o show se encaminha para o final com Que Tal um Samba?, lançada já em 2022 num single. Chico e Mônica revisitam um pouco do Samba da Benção, de Baden Powell e Vinícius de Moraes, e do Samba da Minha Terra, de Dorival Caymmi. É o desfecho perfeito, antes da volta para o bis.

Chico e Mônica estão irretocáveis no palco. Ele, com a sua costumeira contenção. Ela, com uma alegria esfuziante. Um imenso compositor e uma grande cantora. Ele, a admirar a beleza da voz. Ela, embevecida com a força extraordinária das canções. Pessoas que fazem a gente acreditar que o Brasil pode dar certo – como na conversa com Caetano que mencionei no início do texto. Depois do show, um amigo me disse: há o sorriso e a gargalhada. O sorriso é mais elegante. Precisamos de alegria e crença no futuro. Chico e Mônica fazem isso com muita elegância.

MEU COCO, Caetano Veloso

Grandes belezas do Brasil, Chico Buarque e Caetano Veloso tal como foram vistos ao vivo em 2022

Ao ver Meu Coco, lembrei de Caetano Veloso falando sobre Moacir Santos e Letieres Leite, que a Covid levou. Moacir, Letieres – essas pessoas que fazem a gente crer no Brasil. É difícil pensar assim num momento muito duro da vida nacional, mas é tão necessário quanto verdadeiro. Caetano visto de perto, ali no palco do Teatro Guararapes, também faz a gente crer no Brasil. Aqui, porém, não vou resenhar o show que passa neste domingo por João Pessoa, no Teatro Pedra do Reino.

Enquanto escrevo, fico sabendo da morte de Luiz Galvão. Galvão, o poeta dos Novos Baianos. O cara que fez aquelas letras todas, com melodias de Moraes Moreira, que a gente canta há 50 anos. Os Novos Baianos do início da década de 1970, do Acabou Chorare, do Futebol Clube, do rock, dos ritmos do Nordeste e – sobretudo – da lição que João Gilberto transmitiu presencialmente a eles. Os tais Novos Baianos que passearam na garoa e curtiram São Paulo numa boa, como canta Caetano na letra inspiradíssima de Sampa.

Na estrada, a caminho do Recife, falei sobre o amor e a profunda admiração de Caetano Veloso por Miguel Arraes e sua irmã Violeta. Na plateia do Teatro Guararapes, conversei rapidamente com Lula, um dos filhos de Arraes. Lula, que vi tantas vezes no backstage dos shows de Caetano. Quando Arraes morreu, Caetano foi ao Recife velar o grande político pernambucano e ficar um pouco com seus familiares – um gesto de solidariedade e amizade bem guardado na memória de Lula. Na minha também.

Caetano todo de branco no palco do Teatro Guararapes no show Meu Coco. Lembrei de Caetano todo de branco no palco do Teatro Guararapes no show Velô. Outubro de 2022 e dezembro de 1984. Um separado do outro por 38 anos. Velô foi minha primeira vez no Guararapes. Em Velô, o artista falava sobre Miguel Arraes. O passado, no governo de Pernambuco e depois no exílio. O presente, no Brasil que via a ditadura em seus estertores. O futuro, na candidatura ao governo pernambucano em 1986, que Caetano defendia enfaticamente.

Em 1984, quando pedia voto para Miguel Arraes, Caetano tinha 42 anos, eu tinha 25. Em 2022, tem 80, eu tenho 63. O artista que vejo abrir o show com Avarandado, lá de 1967, de um pouco antes do Tropicalismo, agora, em suas novas canções, fala de um outro mundo e, principalmente, de um Brasil mergulhado num impasse mais assustador do que outros que já testemunhamos. O Caetano de 2022, sai do lugar que ocupa no centro do palco, se aproxima da plateia e, sem a necessidade de citar nomes, clama: “Pelo amor de Deus, nós não vamos deixar!”.

Caetano Veloso está do lado certo. A plateia, que entoa um sonoríssimo “Lula lá” e levanta as mãos em “L”, está do lado certo nesse instante tão grave da vida brasileira. Pena que mais de 50 milhões estejam do lado errado. São aqueles que, com maior ou menor consciência, votaram num candidato que banalizou o mal, a mentira e a perversidade e ameaça a democracia. São aqueles cujo candidato tem como aliado um ex-deputado que, sem qualquer cerimônia, chama de “prostituta arrombada” uma ministra do Supremo Tribunal Federal.

Meu Coco me alegra porque novamente põe Caetano Veloso na minha cara. Caetano, esse artista extraordinário, gigante, de papel tão enormemente importante na minha formação de ouvinte da canção popular do Brasil e do mundo. Também me traz uma certa melancolia por causa do tom autobiográfico e retrospectivo que há no repertório e nas falas do artista sobre suas bandas. Caetano fala do passado dele e remete a gente ao nosso passado. Inevitável a lembrança do tropicalista Jomard Muniz de Britto, que hoje, aos 85 anos, está vivo, mas distante do mundo.

Meu Coco traz duas canções da década de 1960, 10 da de 1970 e segue pelos anos 1980 e 1990. Num total de 25, sete são do álbum novo, lançado em 2021. Mas tudo é apresentado sob um olhar de inquestionável e impressionante contemporaneidade. Caetano sempre foi (e assim permanece) um artista contemporâneo de qualquer tempo do seu tempo. A síntese de muito do que vemos ao longo dos 100 minutos do show pode estar (e Caetano, de certo modo, diz isso) no arranjo poderosíssimo de A Bossa Nova É Foda.

Em Livro Vivo, de 1998, os percussionistas ocupavam o lado esquerdo do palco. No lado direito, ficava o naipe de metais. Em Meu Coco, à esquerda, estão as guitarras, teclados e baixo. À direita, percussão e bateria. Tudo é impactante demais: a performance de Caetano, a sua voz, os arranjos, o alto nível da banda. E, claro, todas essas canções. Baby, ou You Don’t Know Me, ou Muito Romântico, ou Trilhos Urbanos, ou Reconvexo, ou Itapuã, ou as mais novas. Elas nos são ofertadas por um artista que está entre as grandes belezas do Brasil.