Há um ano, Lula livrou o Brasil de Bolsonaro, mas não consegue se livrar de Lira

Hoje é segunda-feira, 30 de outubro de 2023. Há um ano, no domingo 30 de outubro de 2022, com pouco mais de 60 milhões de votos, Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente e livrou o Brasil de Jair Bolsonaro.

Lula está no governo há 10 meses. Sob Lula, o Brasil está muito melhor do que sob Bolsonaro. Não tenhamos qualquer dúvida. Mas, sob Lula, o Brasil tem impasses que precisam ser resolvidos, e a gente sabe que alguns dificilmente serão.

Se, um ano atrás, fosse dito que, hoje, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva seria dependente (digo dependente para não dizer refém) das pressões (digo pressões para não dizer chantagens) do presidente da Câmara, Arthur Lira, e do Centrão, você, eleitor petista, não acreditaria. Mas a realidade se impõe. E é triste constatar que é assim.

Onde você estava um ano atrás? Bem, na noite de 30 de outubro de 2022, eu estava em casa acompanhando a apuração pela TV e, divulgado o resultado, escrevi esse texto que revisito agora, sem qualquer alteração.

É o que segue:

O presidente Jair Bolsonaro é uma liderança inconteste. É um líder do que há de pior, mas é um grande líder popular nesse Brasil dividido em dois. O curioso é que ele e seus aliados erraram muito. Erraram tanto que perderam a eleição. Lá em 2020, o presidente, estupidamente, abriu mão de liderar uma grande cruzada nacional pela vida durante a pandemia. Ao contrário, liderou uma cruzada pela morte. Fez deboche de uma doença que matou quase 700 mil brasileiros. Em seu mandato, enquanto trocava a ciência pelo negacionismo, Jair Bolsonaro atacou o Congresso, o Supremo, defendeu o golpismo, desqualificou o sistema eleitoral. Fez tudo o que não poderia fazer.

No segundo turno da eleição presidencial, diante de garotas venezuelanas numa comunidade no Distrito Federal, o presidente disse que “pintou um clima”, mas o que pintou mesmo foi uma incômoda discussão sobre pedofilia em torno de um candidato que disputava a reeleição para presidente. Houve a arruaça dos bolsonaristas na festa da Padroeira do Brasil, mas houve, sobretudo, as ameaças do ministro Paulo Guedes ao salário mínimo e às aposentadorias. Roberto Jefferson, grande aliado, fez a parte dele ao dar tiros de fuzil e jogar granadas em policiais federais, e Carla Zambelli, do núcleo duro do bolsonarismo, arma em punho, perseguiu um homem em São Paulo.

Nessas horas, não é bom chutar cachorro morto, mas bem que eles – o presidente, seus aliados e a parcela mais idiotizada do seu eleitorado – merecem. Foram muito arrogantes, foram muito desrespeitosos, foram muito violentos, foram muito cínicos, debocharam em excesso, provocaram demais. Vi de perto. Vimos de perto. Amigos que não podem mais ser amigos, parentes que só merecem distância, homens cultos entregues à ignorância, artistas optando pela extrema-direita. Vi de perto nas redes sociais. Vimos de perto. Gente que um dia pareceu sensível adotando o mais inaceitável de todos os discursos, trocando seu humanismo pela barbárie.

O presidente Jair Bolsonaro não merece perdão. O presidente Jair Bolsonaro merece a inelegibilidade, quem sabe a prisão. Ele cometeu crimes em série, e a ele tudo foi permitido desde aquele dia em que defendeu e homenageou um torturador na sessão de admissibilidade do impedimento da presidente Dilma Rousseff. Eleito presidente, Bolsonaro atacou sem dó nem piedade a democracia e as instituições, e a ele tudo foi permitido. Na campanha pela reeleição, o presidente desobedeceu a legislação eleitoral, rasgou a Constituição, usou criminosamente a máquina pública, e a ele tudo foi permitido. Apesar de tudo, foi derrotado nas urnas, e é muitíssimo bem feito que assim tenha sido.

Sempre temi que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fosse derrotado pelo presidente Jair Bolsonaro. E quase aconteceu. A esquerda continuou arrogante quando subestimou a força de Bolsonaro e do bolsonarismo. Em caso de derrota, Lula encerraria melancolicamente sua extraordinária trajetória política e humana. A esquerda continuou arrogante. Lula, não. Aos 77 anos, Lula é um homem curtido, dividido entre o êxito das grandes conquistas e as dores inevitáveis da vida. Por isso, ele correu para o centro, fez todas as alianças possíveis, formou uma frente democrática, e o maior símbolo dessa opção de Lula está na escolha de Geraldo Alckmin para ser seu vice.

Quem, como eu, não é lulista nem petista, achou bonito ver todos em cima do caminhão, diante da multidão na Avenida Paulista, na noite deste histórico domingo, 30 de outubro de 2022. Marina Silva, com quem o PT foi sórdido em 2014. Simone Tebet, tão criticada algumas semanas atrás, quando disputava o primeiro turno e se projetava como notável liderança de dimensão nacional. O garoto João Campos, do PSB pernambucano, filho de Eduardo Campos. Mas, principalmente, Geraldo Alckmin, de quem não pode ser retirado o papel de construtor da democracia brasileira. Para governar o Brasil, Lula sabe que não será possível sem o apoio de todos eles. E muitos outros.

No início desse texto, escrevi que o presidente Jair Bolsonaro é um líder inconteste, mas um líder do que há de pior. Digo agora que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, agora presidente eleito, também é um líder inconteste, mas um líder do que há de melhor em nossa democracia. Ele chega à Presidência comprometido com as grandes causas do Brasil. Muito mais: a vitória de Lula é uma vitória em escala mundial, não só pelo seu inquestionável compromisso com a democracia ou pela dimensão internacional que conquistou quando governou o Brasil de 2003 a 2010. Mas, sobretudo, pela consciência que tem do quanto a questão climática é crucial para o planeta.

Luiz Inácio Lula da Silva tem uma árdua missão pela frente. Seu governo precisará ser muito maior do que um governo do PT num Brasil rigorosamente dividido em dois. Lula sabe disso mais do que qualquer um de nós. Jair Bolsonaro foi derrotado nas urnas, mas o bolsonarismo está vivíssimo como expressão do que o Brasil tem de pior. Lula não vai precisar apenas do parlamento. Lula não vai precisar só das instituições. Lula vai precisar da sociedade civil. O homem que governará o Brasil a partir de primeiro de janeiro de 2023 vai precisar de todas as forças verdadeiramente comprometidas com o futuro do Brasil. São essas forças que nos livrarão de um novo Bolsonaro.