Jaguaribe Carne sintetiza trabalho em show e traz cirandas inéditas

Nós éramos os “comunas” do colégio. Quem disse foi Walter Galvão. “Nós” quer dizer: o próprio Galvão, os irmãos Pedro Osmar e Paulo Ró, e eu. O ano era 1971, e estávamos todos no curso ginasial, no Colégio Estadual de Jaguaribe. Pedro Osmar tinha 17 anos. Galvão, 16. Paulo, 13. E eu, o caçula, 12. “Comunas”, não sei se éramos. Mas já havia uma boa dose de transgressão em cada um de nós. Disso, tenho certeza. Essa lembrança foi que me fez vestir uma blusa vermelha com a foice e o martelo em amarelo (hoje, mero ícone pop) para ver o show do Jaguaribe Carne na Usina Cultural, sexta-feira (16) à noite.

No palco, Paulo Ró me honrou com uma saudação. Fui chamado de amigo de infância e de audições musicais. Isso mesmo. Foram aquelas muitas audições que nos formaram e, ao lado de outras coisas, nos fizeram ser o que somos. A gente vem de um tempo – faz meio século! – em que era hábito ouvir música em grupo, e aquilo tinha um caráter formador. Em 1971, Pedro Osmar já fazia músicas. Compunha canções incríveis que impressionaram meu pai. Paulo Ró ainda não era Paulo Ró. Era Roberto. Não fazia músicas, mas já começava a tocar violão, e me ensinava canções cheias de acordes, como a balada Beware of Darkness, de George Harrison.

Alguns poucos anos depois, eles eram o Jaguaribe Carne. Pedro Osmar, Paulo Ró, Vandinho e (se não estou enganado) Damilton. Pedro voltara de uma temporada no Rio, realizara a importante Coletiva de Música da Paraíba e mergulhara num experimentalismo radical, música aleatória que tomava o lugar das canções. O grupo tocou no auditório da Reitoria, no Parque Solon de Lucena, grande espaço que recebia artistas nos anos 1970, e em seguida fez uma turnê pelas escolas estaduais. Um dos shows foi no Colégio Estadual de Jaguaribe. Eles no palco, eu na plateia – um reencontro interessante com a escola do nosso curso ginasial.

Muito tempo se passou. Quase uma vida. Hoje, Pedro Osmar tem 68 anos. Paulo Ró, 64 (atingiu o “when i’m sixty four” da canção dos Beatles). Eu, 63. Walter Galvão nos deixou um pouco antes de completar 65. Ver o Jaguaribe Carne no palco me remete naturalmente a todas essas coisas. Tem algo de saudoso, uma certa melancolia. Mas tem também a consciência do quanto esses dois caras permanecem ligados no que é contemporâneo. A música deles continua fortemente transgressora, vigorosamente provocadora, incrivelmente bela. Foi o que vimos no show da Usina Cultural, que me pareceu uma espécie de síntese do que o Jaguaribe Carne é.

Uma vez, já faz tempo, num aniversário de sua carreira, Gilberto Gil usou a expressão “raízes e antenas” para falar do seu trabalho. Raízes e antenas – gosto muito. É o que temos na música do Jaguaribe Carne, na formação de Pedro Osmar e Paulo Ró enquanto ouvintes e operadores do artesanato musical. As raízes, as fontes, estão vivíssimas , cada vez mais, no que eles produzem. Tanto quanto as antenas, das quais nunca abriram mão. O show de agora tem músicas com letra e melodia, tem temas instrumentais e tem momentos de puro experimentalismo. Tem música de amor, evocações familiares que soam universais e também contundentes manifestações políticas.

A primeira parte trouxe algumas músicas que o público já ouviu. A segunda foi dedicada a um conjunto de músicas novas que carregam um conceito. Chama-se Izabel, 7 cirandas negras e um apito. É um trabalho com começo, meio e fim, para ser ouvido inteiro. Depois que a mãe (Dona Izabel) morreu, Pedro Osmar escreveu pequenos textos poéticos. Paulo Ró gostou tanto que resolveu musicá-los. O resultado é impactante. São cirandas apresentadas com vozes femininas que nos conduzem mais às raízes do que às antenas. São muito bonitas. Às vezes, comovem, como na “floresta da família”, verdadeiro achado poético de Pedro.

Pedro Osmar organizou o movimento. Paulo Ró fez música. Não quero ser reducionista, mas acredito que a classificação é fiel ao espírito criador de cada um. Sexagenários, podendo ver tudo de longe, agora eles oferecem frutos à plateia. Alguns são doces. Outros são necessariamente ácidos. Uma roda de ciranda se formou em frente ao palco, algo tão improvável ao som do Jaguaribe Carne. Meu olhar foi de contemplação. De alegria e orgulho por ter testemunhado a trajetória toda, tanto convergindo quanto divergindo. A música popular que se faz atualmente na Paraíba não seria a mesma não fosse a existência do Jaguaribe Carne.