Walter Galvão me disse que não queria durar. O que ele queria era viver

Walter Galvão me disse que não queria durar. O que ele queria era viver

A primeira lembrança que guardei foi dele em pé em cima do bagageiro de uma Monareta.

Isso foi há 50 anos.

Era um adolescente um pouco mais velho do que eu. Três anos nos separavam.

Logo depois, descobri que estudávamos no mesmo lugar. Fazíamos o ginásio no Colégio Estadual de Jaguaribe. Ele, um ano na frente.

Ele, eu, Pedro Osmar, Paulo Ró – éramos os “comunas” do colégio, escreveu anos mais tarde.

Nem tanto, nem tanto. Mas éramos capazes de algumas transgressões

Walter Galvão Peixoto de Vasconcelos Filho. Tinha o nome extenso.

E era sobrinho de Gerusa, a primeira mulher de Archidy Picado, um amigo/irmão do meu pai.

Tocamos juntos na banda do colégio. Ele no surdo. Eu na caixa. Era estranho, “comunas” tocando numa banda marcial para desfilar no 7 de setembro de uma ditadura militar, mas aconteceu.

Parecia que a música seria seu caminho.

Atuou num quarteto vocal em que todos, como ele, se chamavam Walter.

Foi cantor de conjuntos de baile. Frequentei os ensaios de um deles, ali junto do Cine Bela Vista, nos fundos da casa de Carlos, o baterista.

Galvão tinha a voz bonita, era afinado. E havia a guitarra irresistível de Dedé. O conjunto – ainda não usávamos banda – se chamava Santanás, mistura óbvia de Santana com satanás.

Morávamos todos em Jaguaribe. E éramos muito modestos.

Eu na Conceição. Ele na Maximiano Machado. O artista plástico Hermano Cananea e o poeta Lúcio Lins na Aderbal Piragibe. Os irmãos músicos Paulo e Babi na Monsenhor Almeida. Pedro Osmar e Paulo Ró, um pouco mais distantes, na antiga Rua da Paz. Archidy Picado, misto de artista plástico e professor, na Frei Afonso. Unhandeijara Lisboa na Senador João lira.

Nossos caminhos se cruzaram mesmo em meados dos anos 1970. No jornalismo.

Galvão foi fazer rádio e começou a atuar também no impresso. Nunca esqueci da crítica dura que fez ao disco de estreia do mineiro Beto Guedes, nem da sua rejeição inicial ao cearense Belchior.

Estivemos juntos em A União, na virada dos anos 1970 para os 1980. Agnaldo Almeida na editoria, ele na secretaria de redação. E tinha Gonzaga Rodrigues, Jurandy Moura, Carlos Aranha e Antônio Barreto Neto. Um período muito rico.

No impresso, o Galvão que guardo mais na memória é o dos Associados, pelo tempo que passou em O Norte, e o do Sistema Correio, por sua ligação profunda com o Correio da Paraíba.

Mas era múltiplo.

O jornalismo, como fazer cotidiano, lhe era insuficiente

Walter Galvão era um homem de muita leitura, do debate acadêmico, das discussões culturais e políticas. Ainda muito cedo, se transformou num intelectual que fazia jornalismo. E publicou muitos livros.

Depois dos 40, trocou as redações pela política partidária. Justificou dizendo que queria conhecer por dentro o que só conhecia por fora.

Foi num encontro casual, na esquina do TRE, na mesma conversa em que me disse que, no futuro, aposentado, eu juntaria amigos e amigas em casa para vermos filmes.

Esse tempo chegou tão rapidamente que nem senti, mas penso que ninguém quer mais saber dessas reuniões. Na verdade, elas evocam a nossa juventude, quando nos juntávamos para ouvir “som”.

Galvão fez parte do grupo que levou Ricardo Coutinho à prefeitura de João Pessoa e ocupou diversos cargos públicos.

No final da década de 2000, voltou às redações como diretor de jornalismo do Sistema Correio e editor do jornal impresso.

No início de 2011, quando fui defenestrado pelo governador Ricardo Coutinho e ouvi do secretário Nonato Bandeira que, a despeito de ter votado em Ricardo não teria qualquer espaço em seu governo, foi Galvão que me reinseriu no mercado.

Foi ele que se preocupou com meu desemprego e me acolheu na TV Correio. Primeiro, como editor do jornal noturno. Depois, como editor chefe da emissora.

Galvão era um desses raros amigos/irmãos que a gente faz na vida. No debate cultural e político, convergíamos, divergíamos, mas havia algo maior a nos unir.

Um dia desses, acho que pouco antes da pandemia, disse que eu era um democrata liberal de centro-esquerda.

Nos últimos anos, nos vimos pouco. Dez vez em quando, mais por insistência minha, íamos juntos ao Recife em busca de livros, filmes e discos.

Mas conversávamos muito por telefone.

E houve aquela noite inesquecível – 26 de julho de 2013 – em que levei Caetano Veloso para jantar na casa dele. Passamos a chamar “Caetano’s day”. Ficou como expressão da minha amizade por ele e por Jória, sua companheira de tantos anos.

Galvão descobriu o câncer em fevereiro. O prognóstico era sombrio. Viveu menos de cinco meses a partir do diagnóstico.

Em quatro ou cinco mensagens que me mandou, entendi que era claro o seu sentimento de que estava no fim.

“Não quero durar. Quero viver” – foi, nessas mensagens, a frase que mais me marcou.

E a que mais me entristeceu.

Pela consciência que tínhamos – ele e eu – de que não teria a vida desejada. E de que duraria muito pouco.