Na pandemia, diminui a imunidade ao imposto sobre a transmissão de imóveis

ITBI é conhecido no Brasil pelo menos desde o período colonial

A tributação da transmissão entre vivos de imóveis é há muito criticada porque não necessariamente revela nenhuma riqueza do vendedor, que pode vender seu bem sem qualquer ganho ou até mesmo por valor inferior ao de aquisição.

No entanto, é possível ver no imposto a tributação da riqueza do adquirente, que a revela precisamente no ato da compra. Assim, da mesma forma que os consumidores suportam economicamente impostos sobre o seu consumo de mercadorias e de serviços, também se aplicaria essa mesma lógica à circulação dos bens imóveis no mercado. Diferentemente dos demais tributos sobre o consumo, pelo valor dos bens envolvidos e pela pouca aceitação social da exação, não costumam as alíquotas ultrapassarem a marca de 3%.

Seja como for, o imposto é conhecido no Brasil pelo menos desde o período colonial (1809), época da qual adveio o epíteto de origem portuguesa de “sisa”.

No passado, foi atribuído aos Estados, mas a Constituição Federal de 1988 o entregou aos Municípios, para incrementar a arrecadação municipal e para aproveitar o fato de que o cadastro municipal de imóveis para fins de IPTU pode facilmente servir aos fins arrecadatórios do ITBI. 

A lógica, aliás, de conceder aos entes locais os tributos imobiliários não é nova nem exclusiva do Brasil. Dada a histórica proximidade com o povo, as prefeituras teriam mais condições de fiscalizar e arrecadar esses impostos. Além disso, dadas todas as atribuições urbanísticas das edilidades, faz sentido que os impostos imobiliários sejam por elas arrecadados.

Ao mesmo tempo em que a Constituição municipalista de 1988 quis prover de novos recursos os municípios, não abandonou sua tradição de vedar a incidência do imposto sobre determinadas operações. Criou assim uma das chamadas imunidades tributárias.

Pela Carta da República, são imunes ao imposto sobre a transmissão entre vivos de bens imóveis (ITBI) as transmissões “de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital”.

Para que se entenda essa imunidade, deve o leitor perceber que, ao criar uma pessoa jurídica, os sócios devem transferir recursos a ela para formar o capital social, recursos que podem ser pagos em dinheiro ou em bens. Num simples exemplo, se dois sócios pretendem abrir uma lanchonete e para tanto criam uma sociedade detida por ambos em partes iguais com capital social de 200 mil reais, pode ser que um sócio transfira para a sociedade um imóvel de sua propriedade no valor de 100 mil reais, onde funcionará o estabelecimento, e o outro transfira 100 mil reais em dinheiro, que servirão para cobrir todos os custos iniciais do negócio: montagem do espaço, aquisição de máquinas e equipamentos, pagamento dos primeiros salários etc.

Entendendo que o empreendedorismo deve ser fomentado e querendo facilitar a constituição de pessoas jurídicas, o constituinte vedou a cobrança de ITBI desse tipo de operação. Assim, se um sócio transfere à sociedade, como sua contribuição para o capital social, um imóvel, não será devido ITBI algum.

Surgiu, no entanto, a seguinte situação. Não é raro que, por diversas razões, inclusive tributárias (embora não diretamente concernentes ao ITBI), sejam transferidos à sociedade bens de valor superior ao do capital social que o sócio deve aportar à sociedade.

Muitos municípios, então, percebendo que a imunidade constitucional se referia aos imóveis incorporados em realização do capital social, passaram entender que a imunidade só se limitaria ao valor do capital social correspondente ao sócio transmitente.

Assim, no nosso singelo exemplo, caso o imóvel transferido valesse 200 mil reais, embora o sócio só tivesse que contribuir com 100 mil reais, seria devido ITBI sobre a diferença (100 mil reais).

A questão chegou ao Supremo Tribunal Federal que, por 7×4, decidiu favoravelmente aos Municípios.

Embora haja outros argumentos que não cabem num artigo jornalístico, basicamente o embate jurídico se resumia a duas alegações contrapostas. 

Pela primeira, a dos contribuintes, se o objetivo da imunidade é o de fomentar o empreendorismo e de diminuir seus custos, a imunidade deveria ser integral. Afinal, o imóvel está sendo transmitido como contribuição de sócio à sociedade, e o fato de ele valer mais do que a contribuição devida não deveria, pois, gerar ônus tributário.

Por outro lado, as Fazendas Municipais entendiam que, se a finalidade era resguardar a integralização do capital social, não haveria sentido em não cobrar ITBI sobre a parte que excedesse ao capital a contribuir.

Por trás disso tudo, em muitos casos, está o fato de que, quando se contribui com um bem ao capital social de uma sociedade, tem-se a opção, garantida pela legislação federal, de fazê-lo pelo valor de custo histórico do imóvel (valor pelo qual o sócio adquiriu o bem). A transmissão pelo valor de mercado, se superior a esse custo, enseja, a partir de certo valor, pagamento de imposto de renda sobre o ganho de capital. Assim, para evitar isso, é comum que o valor do capital social seja subdimensionado, exatamente para ficar compatível com o valor histórico do imóvel a integralizar. Evita-se assim o imposto sobre o ganho de capital, mas, pela decisão do Supremo Tribunal Federal, embora haja controvérsias sobre sua exata interpretação, deve-se pagar ITBI.

Se a decisão é a mais correta não é óbvio. Havia, não há dúvida, bons argumentos para ambos os lados.

O certo é que o Supremo Tribunal Federal, que, em outras situações que fogem ao escopo deste artigo, historicamente trata com extrema má-vontade o imposto municipal, replicando a pouca aceitação popular do imposto, dá sinais de mudança de humor e, em plena pandemia, reduz a imunidade dos contribuintes ao ITBI.

Dada a última palavra sobre o tema, resta aos insatisfeitos apenas um remédio: tentar modificar a Constituição.

* André Coelho de Miranda Freire é Procurador do Município e Diretor Fundador do Instituto de Pesquisas Fiscais