Opinião: “Um trago mais para Caroço de Pinha”

Crônica foi publicada em livro em dezembro, meses antes da morte do torcedor ilustre.

Caroço de Pinha em jogo do Belo no Almeidão (Foto: Phelipe Caldas)
Opinião: "Um trago mais para Caroço de Pinha"
Caroço de Pinha em jogo do Belo no Almeidão (Foto: Phelipe Caldas)

Crônica publicada originalmente no meu livro “Quando a Saudade me Visita” (Ideia, 2020). Hoje, Caroço de Pinha morreu para sempre.

Decrete-se.

Publique-se.

Faça-se circular a informação por todos os botecos, ruelas e esquinas da Cidade Velha.

Caroço de Pinha está eleito.

Escolhido democraticamente.

Levado pelos braços do povo.

Carregado pelos pobres, pelos velhos, pelos bêbados, pelos eufóricos, pelos anônimos.

É o novo presidente do Estádio Almeidão.

E presidente de honra. Vitalício. Eterno. Quase um rei, por que não?

Com um governo popular. Com sede firmada na Arquibancada Sombra. Com as listras alvinegras de sua camisa surrada fazendo vezes de faixa presidencial. Com uma generosa lapada de cana e um cigarro Derby preso por entre os dedos como equipamentos de trabalho.

E, ao mesmo tempo, como armas. Resistências. Transgressões.

O velho Caroço é o símbolo maior de um futebol marginal como o da Paraíba e o de João Pessoa.

Um futebol pobre, de recursos parcos e gestão semiprofissional. Um futebol sofrido, gerido muitas vezes por corruptos, mas que ao mesmo tempo pulsa. Vibra. Persiste. Insiste em se manter vivo – e cativo.

Caroço de Pinha é uma das poucas unanimidades num ambiente sempre tão tensionado como o do futebol.

E isso é lindo.

Um homem negro, pobre, de idade incerta, rugas profundas que denunciam o sofrimento de quem não tem quase nada, que usa roupas carcomidas e tem um andar vacilante, bêbado mesmo, mas que desbanca os poderosos e se torna a principal imagem de um estádio de futebol.

Nem todo torcedor sabe quem é o presidente do Botafogo-PB. Muitos dos que sabem nem mesmo gostam dele. Mas todos, todos mesmo, sabem quem é Caroço, o misterioso e simples torcedor que há mais de trinta anos vai religiosamente aos jogos do seu time do coração. Todos, todos mesmo, reconhecem sua voz rouca e pouco articulada. A maioria já lhe pagou um trago. Os fumantes certamente já lhe doaram umas baforadas.

Caroço de Pinha é enigmático. Mítico. Folclórico. Poucos sabem que o nome dele é Antônio. E ninguém sabe direito onde mora. Quem são seus amigos e familiares. Como chega. Como vai. Como paga sua entrada. Como vive.

Só se sabe que chega. Sempre. Sagradamente. Pontualmente. Jogo após jogo.

E, como um homem afeito a rituais, chega sempre da mesma forma.

Bêbado. Animado. Dançando. Gritando. Conclamando seus súditos a caminhar sofregamente junto dele na procissão ritmada rumo à Sombra, único local onde se sente seguro, verdadeiramente em casa.

Caroço de Pinha é uma espécie de mago. Mágico. Profeta. Poeta.

Anos atrás, fui para um jogo do Belo em Fortaleza. Caminhei pelo entorno do Estádio Presidente Vargas. De repente, deparei-me com Caroço. Inebriado. Alegre.

Maltrapilho. Sem ingresso. Sem dinheiro. Mas, na hora do jogo, estava lá dentro do estádio. Bebendo mais. Fumando mais. Curtindo mais. Torcendo como sabe. Vivendo intensamente.

Não se sabe ao certo como ele consegue tudo isso.

Mas, presidente é presidente. Rei é rei. Sobrevivente é sobrevivente.

Dá um jeito.

Segue em frente.

Vive.

Resiste.

Para sempre, apaixonado e pleno, como só ele sabe ser.