O dia em que Sivuca tocou com Paul Simon

A reaudição de um disco de Paul Simon de meados da década de 1970 me faz pensar em Sivuca. Não só por causa da presença do músico paraibano numa das faixas, mas, principalmente, porque o solo que ouvimos ali remete à origem de uma fusão que diferenciou a sanfona dele das outras sanfonas. E talvez a tenha feito mais ouvida dentro e fora do Brasil por sua absoluta originalidade.

O dia em que Sivuca tocou com Paul Simon

O disco de Simon: Still Crazy After All These Years. A canção: I Do It For Your Love. A fusão: da voz do nosso sanfoneiro com o seu instrumento. O encontro dos dois elementos – a voz e a sanfona – geraria um terceiro, uma sonoridade única que se transformaria numa espécie de assinatura.

Sivuca faz um breve solo no meio da canção de Paul Simon. Melodia que, por nunca ter esquecido, solfejava com facilidade. Uma lembrança que esteve presente duas ou três vezes em nossas conversas e que a ele, se não estou equivocado, não parecia importante. Quero, contudo, retomá-la pelo que há de elucidativo nela em relação à origem da fusão entre voz e sanfona.

O que temos no disco de Simon é um solo em que, misturada à sua voz, a sanfona de Sivuca, numa melodia que lembra uma toada nordestina, soa como se fosse um sax. Mais do que em outros registros, em I Do It For Your Love, Sivuca desliza os dedos pelas teclas do instrumento como se estivesse soprando num saxofone.

Toda esta conversa, que começa com a reaudição de um disco de Paul Simon e desemboca no casamento entre a voz e a sanfona de Sivuca e na sua semelhança com o sax, tem a ver com o que o músico me disse na última grande entrevista que deu, duas semanas antes de morrer.

Eis a transcrição:

Meu sonho começou quando escutei a Orquestra Tabajara pela primeira vez, em 1943, 1944, nos bailes que Severino Araújo fazia no Itabaiana Clube. Verifiquei que aquele tipo de arranjo era diferente do que eu escutava nas bandas, e aquilo era o que eu queria fazer. Tanto que a minha sanfona soava diferente das outras porque eu tocava o instrumento como se estivesse tocando um saxofone.

A explicação é do próprio Sivuca. A sonoridade da sua sanfona vem dos saxofones da Orquestra Tabajara tal como ele a ouviu em Itabaiana, antes de Severino Araújo levar a big band para o Rio de Janeiro. Ao tomar a Tabajara como parâmetro e ao buscar em um dos seus naipes o som da sua sanfona, Sivuca parecia antecipar a sua compreensão da música como algo do mundo e não como uma manifestação circunscrita à sua pequena Itabaiana.

O caminho que ele seguiu, da Paraíba para Pernambuco (onde estudou com o maestro Guerra Peixe) e de Pernambuco para o mundo, só confirma a universalidade dos sons que produziu a partir daquele encontro da sanfona com os saxes da Tabajara.

Claro que não é preciso ouvir Paul Simon para desvendar Sivuca. O que acontece é que em I Do It For Your Love a sanfona está tão explicitamente parecida com um sax que o que ele me disse pouco antes de morrer fica ainda mais evidente.

Sivuca estava deixando Nova York para voltar a viver no Brasil quando participou do disco de Simon. Mais ou menos na época em que o vi ao vivo pela primeira vez, num memorável concerto no Teatro Santa Roza. Ali, a execução de Moonlight Serenade também nos levava a identificar um sax na fusão da voz com a sanfona.

Em seus últimos anos, quase sem voz, Sivuca foi privado de produzir esta sonoridade que sempre reencontro nesse belo disco de Paul Simon.