Com leitura de discurso escrito em vida, Dom José recebe título póstumo de cidadão paraibano

Sem temer a Ditadura Militar, Dom Pelé lutou pela dignidade humana dos pobres.

Foto: Rogério Miranda/TV Cabo Branco
Com leitura de discurso escrito em vida, Dom José recebe título póstumo de cidadão paraibano
Solenidade marcou a entrega póstuma do título de cidadania a Dom José Maria Pires. Foto: Rogério Miranda/TV Cabo Branco

“O mineiro que aqui veio ser paraibano quis, durante esta estadia, ajudar o povo nesse processo de conscientização, desejou a alfabetização para que todos os homens pudessem exercer os direitos políticos e humanos que lhes assistem”. A frase faz parte do discurso que o arcebispo emérito da Paraíba, Dom José Maria Pires, faria à Assembleia Legislativa da Paraíba quando recebesse o título de cidadão paraibano. A honraria, aprovada há 52 anos, nunca foi entregue por conta do regime militar.

A título de retratação, o legislativo estadual realizou, na tarde desta segunda-feira (18), uma sessão solenidade para entrega póstuma da honraria. A data, não por acaso, coincide com o ano do centenário por aquele foi eternizado como Dom Pelé, mas também em alusão ao Dia Mundial dos Pobres, celebrado pela Igreja Católica no domingo (17).

Discurso escrito em vida

Privado de receber a honraria em vida – Dom José morreu em 2017 – coube ao jornalista Sílvio Osias, do Blog homônimo no Jornal da Paraíba, ler o discurso que o arcebispo havia deixado pronto. “Olha como vejo o título que me outorgais: o legislativo vem dizer de público que a igreja tem razão, que o evangelho e os problemas humanos caminham pelos mesmos caminhos e que serei o mais paraibano dos cristãos quando for o mais cristão dos paraibanos”, encerraria o homenageado, que de início faria um longo discurso sobre as carências sociais e o papel da Igreja no processo de conscientização dos direitos dos cidadãos.

Militante das causas sociais, ao lado de grande nomes da Igreja Católica, perseguidos pela Ditadura Militar, como Dom Helder Câmara, Dom José viu no título de cidadania um reconhecimento do seu papel para a melhoria da vida dos paraibanos.

“Nunca me ocorreu o medo de que a conscientização das massas fosse uma tática comunista. Antes me parece ser a vocação histórica do homem se conhecendo para se construir. E resistir à historia é ser suicida. Os princípios universais do evangelho encontram sua temática particular nesse momento histórico e nesse recanto da terra quando lembram aos homens de boa vontade o dever cristão de humanizar a Paraíba”, disse Sílvio, reproduzindo o que Dom José preparou em discurso.

O arcebispo da Paraíba, Dom Delson, disse estar emocionado em participar da homenagem a Dom José e ter tido acesso ao seu discurso. “Espero  que as palavras de Dom José ecoem porque elas são muito atuais. Num tempo de tensões, ele faz uma leitura que é de uma realidade que ainda persiste. Segundo a ótica cristã, de superar as ideologias de direito e da esquerda, de pobres e ricos, o que está em questão é o ser humano”, lembrou.

Documentário

Na ocasião, um documentário sobre o ex-arcebispo produzido pela TV Assembleia também foi lançado. Ele foi exibido de forma resumida na solenidade, mas deve ser transmitido na integra na grade da TV.

Sílvio Osias participa do material, como testemunha ocular da importância de Dom José para a população paraibana nas três décadas em que conduziu a Arquidiocese da Paraíba, com quem acabou construindo uma amizade. “Minha mãe era católica, havia sido freira na juventude. Meu pai era comunista e ateu. Os dois, por motivos distintos, foram atraídos pela figura de Dom José. Posso dizer que fui junto com eles”, lembra Sílvio.

Para o presidente Adriano Galdino, propositor da honraria, falar do Dia Mundial dos Pobres é mais uma forma de discutir políticas públicas que possam beneficiar aos mais necessitados com dignidade e qualidade de vida. “Essa iniciativa da Igreja Católica serve justamente para nos lembrar das disparidades existentes no mundo. E isso faz com que nós, que somos representantes do povo, busquemos cada vez mais dialogar com todos para buscar caminhos que possam melhorar a vida dessas pessoas que pouco têm e muito sofrem”, destacou.

Com leitura de discurso escrito em vida, Dom José recebe título póstumo de cidadão paraibano

Homenageado

Dom José nasceu em Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais, em 15 de março de 1919 e foi o quarto arcebispo da Paraíba. O arcebispo emérito entrou no seminário aos 14 anos e ordenou-se padre aos 22 anos, em Diamantina. Sua ordenação a bispo veio em 1957, e a arcebispo, em 1966. Ele renunciou ao cargo em 1995, a partir de quando passou a figurar como arcebispo emérito.

Próximo de Dom Hélder Câmara, Dom José foi um símbolo da resistência ao governo militar. Teve também participação valiosa nos conflitos pela terra na Paraíba, ao defender camponeses.

Participante ativo da luta pelos direitos dos negros, em 2013, publicou o livro “A cultura religiosa afro-brasileira e seu impacto na cultura universitária”. Quando se tornou emérito, voltou a ser pároco de Córregos e Santo Antônio do Norte, no Vale do Jequitinhonha, onde se dedicou também a um projeto de geração de renda para centenas de famílias carentes dessa região. Nos últimos anos, residia na Arquidiocese de Belo Horizonte.

Confira o discurso de Dom José na íntegra:

“Ilmos. Srs. Deputados,

A coincidência deste título de cidadão paraibano que me ofereceis nas proximidades das festas natalinas me lembra um fato que se torna a ideia mestra de toda esta minha palavra de agradecimento. Ela poderia chamar-se a dialética do universal e do particular, porque me lembro de Deus feito homem e no mesmo instante feito cidadão do Império Romano. Como homem, Deus assume a espécie humana, se faz parcela da humanidade, sem discriminação nem preconceitos. Assume uma tarefa histórica, destinada a qualquer ser onde se verifica a realidade humana. Dir-se-ia naqueles tempos: destinada a judeus e a gentios. Dir-se-ia, quatro séculos depois: destinados a romanos e bárbaros. Dir-se-ia hoje: destinada a negros e brancos, a homens de direita e de esquerda, do Oriente e do Ocidente, do capitalismo e do comunismo. E este é o elemento universal.

Mas o próprio nascimento do Cristo é marcado por um elemento particular. Ele não é apenas cidadão do mundo. Ele pertence a uma raça, a de Davi. Pertence a um império e é cidadão romano. E, por isso, Maria tem de ir a Belém, onde as leis do Império ordenam que se apresentem seus cidadãos e descendentes da família de Davi. Aí está o particular. Esta reflexão não vem ao acaso, quando um bispo católico se faz cidadão da Paraíba. Porque como católico se afirma o elemento que a própria etimologia da palavra exprime: universal. Como cidadão deste Estado, deste povo, desta porção da realidade brasileira, se afirma o elemento particular. Esse título que ora recebo visa a prestigiar decerto mais a Igreja que represento do que o homem que sou. E se algum mérito recair sobre mim mesmo, será, apenas, pelo fato de eu ter tentado ser aquilo que Cristo é: cidadão de um povo sem deixar de ser cidadão do mundo. Também pelo fato de minha vivência no meio de vós ter sido aquilo que a Igreja é: inspiradora universal das realidades particulares, banhando cada momento histórico que surge, sem se comprometer com ele, para não morrer com ele, porque tudo o que nasce com o tempo, morre com o tempo. E nós cremos numa Igreja que só é contemporânea de todos os homens porque é eterna.

De outra parte, esta mesma Igreja não se aliena do mundo, com medo de se comprometer com ele. Sei que ela vive impregnada de reflexões de eternidade e de riscos eternos. E por isso mesmo ela pensa no tempo e se engaja nas realidades temporais: porque o que vem depois do tempo é decidido no tempo. A eternidade do homem é apenas o eco dos seus passos no mundo, por isso o particular lhe interessa. Isto é um elemento essencial da Igreja. Esta é a novidade do Novo sobre o Velho Testamento, porque antes de Cristo o pensamento de Deus teve preferência por um tipo de civilização judaica, o regime teocrático. Com o Novo testamento surge a novidade da Igreja: ela é equidistante de qualquer civilização, de qualquer regime político. Não existe a civilização cristã, nem mesmo a medieval merece esse nome com exclusividade. Não existe o partido político cristão: nenhum se atribua esse título com exclusividade. Existe uma igreja universal, banhando realidades particulares. Nascem Pedro, Maria, João. A Igreja os batiza. Nascem as civilizações grega, romana, bárbara, medieval, moderna. A Igreja as batiza. E essa vontade de batizá-las, é bom que sempre se repita, é universal. Ensaia-se, por exemplo, hoje, uma civilização comunista. Ninguém pense que a Igreja se recuse a assumi-la. Antes espera que os extremistas do ateísmo oficial um dia tombem para a conversão e o batismo.

A Igreja crê que nenhuma realidade humana é tão satânica que nada de bom se possa salvar nela. E por não querer entender isto, é que muita gente se escandaliza ao ouvir de bispos elogios a aspectos positivos de realidades socialistas, seja em Cuba, China ou Moscou. A Igreja crê que nenhuma realidade humana é tão divina que nada de mau se possa apontar nela. E por não querer entender isto é que muita gente se escandaliza ao ouvir de bispos censura a aspectos negativos de regimes que se pretendem até cristãos ou defensores da cristandade, como os de Franco ou Salazar. Neste particular, ninguém entende a Igreja, como ela pensa, enquanto não entender o mundo, como ele é, porque ainda em nossos dias há quem imagine que o mundo está dividido entre bons, de um lado, e maus do outro, separados pelo muro de Berlim. A Igreja acredita que o mundo é o campo sobre o qual em cada palmo nasceram joio e trigo, o bem e o mal. Para assumir a imagem anterior, a Igreja pensa que o muro de Berlim passa por dentro de cada um de nós. E o bem e o mal se mesclam em nossos pensamentos, nossas palavras, gestos e passos. Só resta uma opção extra para a Igreja: ser universal e particular ao mesmo tempo. Assumir todos os homens, assumindo cada homem: o capitalista e o comunista, o patrão e o operário, o rico e o povo.

Nos últimos tempos, tem se dito que a Igreja vai passando para a esquerda. Diante dos princípios aqui enunciados, isto seria um contra-senso. Há joio e trigo de ambos os lados. Se, entretanto, nos afastássemos um instante das realidades concretas, dos homens que a dirigem, dos atos humanos, sempre falhos porque humanos, e nos ativéssemos a uma pouca conceituação do que seja direita e esquerda, talvez se ativéssemos pudesse dizer que a esquerda se aproxima mais do Evangelho. Repito – porque é melhor mil repetições do que uma ambiguidade –não falo de regimes vigentes, de realidades sociais ou políticas: falo de conceitos. A ideologia da direita se exprime como preocupação de promover alguns, privilegiar alguns, dar a alguns acesso às conquistas da humanidade. Em um segundo momento pensa no resto da humanidade para o qual procura dispensar gestos de compaixão e desejos de promoção humana, contanto que não fira seus privilégios, suas situações criadas.

Em teoria, a esquerda se apresenta como aquela tendência de pensar não apenas em alguns, mas no Homem. Não deseja a promoção de alguns, mas de todos. Mas há preço a banir da terra os privilégios vigentes. Nestes termos, a ideologia de esquerda, que não é necessariamente comunista, é e corre paralela com as ânsias da Igreja que deixaria de ser Igreja se deixasse de ser universal, que trairia a mensagem do Cristo se pensasse de preferência em alguns para privilegiá-los. E quando sua preferência se afirma pelos pobres – é esta uma nota do Evangelho – não é por desejar aos ricos uma condição infra-humana, é por desejar a todos os bens que ainda faltam a tantos.

Representante desses ideais evangélicos, vim eu, mineiro, para a Paraíba, e me torno, oficialmente, paraibano – sinal de que o Bispo deveria mesmo pensar no particular, em nossa terra, em nossos problemas. Aqui enxerguei desde o início a luta contra dois determinismos: um geográfico, outro histórico. No determinismo geográfico, no sentido mais lato, incluo o fenômeno das secas, a precariedade da agricultura, a falta da indústria, tudo o que condiciona o subdesenvolvimento. E, para que o mal não esteja apenas na terra, para lembrar o joio dentro do homem, penso nos que, em tempos não muito remotos, fizeram a indústria da seca, deixando a Paraíba mais subdesenvolvida. Penso no latifúndio improdutivo ou mal explorado. Penso na condição de miséria a que se reduziu o camponês e no pouco de indústria que temos. Penso na insegurança do trabalhador na hora atual. Para superar os condicionamentos geográficos, era preciso a boa vontade. Aqui encontrou seu lugar a voz do Evangelho. E para anunciá-lo a respeito dessas realidades, fui me fazendo cada vez mais paraibano. Como sinal dos tempos e resposta a esses males, surge, no plano histórico, a Sudene. Surge, nos anseios coletivos, a sede do desenvolvimento.

O outro determinismo, esse histórico, vem sendo rompido gradativamente. É que o povo simples de nossa Paraíba pensa espontaneamente como todos os povos simples. Imagina a História como uma realidade cíclica, fatal, inexorável. E se o desenvolvimento veio como sinal dos tempos, e em resposta aos determinismos geográficos, a conscientização vem como sinal dos tempos e como resposta aos determinismos históricos. Nosso povo vai se conscientizando. Vai sabendo que todo homem tem direito a uma condição humana e que os bens do mundo pertencem à humanidade (….) O mineiro que aqui veio ser paraibano quis, durante esta estadia, ajudar o povo nesse processo de conscientização. Desejou a alfabetização de todos os homens, para que todos pudessem exercer os direitos políticos e humanos que lhes assistem. Nunca me ocorreu o medo de que a conscientização das massas fosse uma tática comunista. Antes me parece ser a vocação histórica do homem, se conhecendo para se construir. E resistir à História é ser suicida. Os princípios universais do Evangelho encontram sua temática particular, nesse momento histórico e nesse recanto da terra, quando lembram aos homens de boa vontade o dever cristão de humanizar a Paraíba. Aí está, Srs. Deputados, como vejo e recebo esse título que ora me outorgais. O legislativo vem dizer de público que a Igreja tem razão, que o Evangelho e problemas humanos caminham pelos mesmos caminhos e que serei o mais paraibano dos cristãos quando for o mais cristão dos paraibanos. É isto o que me pareceis dizer neste momento. E vos respondo: muito obrigado”.