CULTURA
'O nó do diabo': cinema paraibano que discute os horrores do racismo
Apesar de irregular, filme paraibano mostra que cinema de horror tem muito a dizer.
Publicado em 29/06/2018 às 20:39 | Atualizado em 30/06/2018 às 7:22
O NÓ DO DIABO (Brasil, 2017, 124 min.)
Direção: Ramon Porto Mota, Jhésus Tribuzi, Ian Abé e Gabriel Martins
Elenco: Zezé Motta, Isabél Zuaa, Cíntia Lima, Edilson Silva, Fernando Teixeira
★★★☆☆
O cinema de horror, como a comédia, é frequentemente encarado como um gênero menor, cuja única e principal função seria amedrontar os espectadores mais sensíveis e divertir os céticos. Grandes questionamentos sobre a natureza humana, profundas histórias de amor, críticas sociais - tudo isso seria restrito ao drama realista, ao documentário, às cinebiografias.
Pois, contrariando esse pré-conceito, é um cinema de horror "que faz pensar" que estreou nos cinemas da Paraíba nesta quinta-feira (28). O nó do diabo (2017) não é apenas horror nacional (que, apesar de filmes como À meia noite levarei sua alma [1967], ainda continuar a engatinhar, tendo rendido recentemente desde obras medianas como O rastro [2017] a bons curtas como Ne pas projeter [2015]): é horror paraibano.
O filme, premiado no 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, no ano passado, é da produtora campinense Vermelho Profundo e dirigido por Ramon Porto Mota, Jhésus Tribuzi, Ian Abé e Gabriel Martins. O longa, originalmente pensado como série para televisão, é dividido em cinco episódios que tratam do racismo enraizado na sociedade brasileira: desde as formas mais sutis encontradas no Brasil de 2018 até o cenário de casa grande e senzala que imperava no século XIX.
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Como é comum em antologias, alguns dos contos são mais bem sucedidos do que outros. Em comum, o cenário: uma casa-grande do Sertão paraibano. Cada episódio se passa em um ano distinto seguindo uma ordem decrescente - o primeiro deles se passa nos dias atuais, e o quinto, em 1818. O único personagem que se repete em todas as histórias é o senhor de engenho da família Vieira (Fernando Teixeira), símbolo da dominação do homem branco sobre a sociedade brasileira no século passado - e hoje em dia. No elenco, ainda estão Zezé Motta, Isabél Zuaa, Cíntia Lima, Edilson Silva, dentre outros.
O caráter político do longa fica claro logo no primeiro segmento, dirigido por Ramon Porto Mota. Nele, um policial é contratado por Vieira para tomar conta do seu engenho, atualmente decadente, abandonado e às vias de ser invadido. O policial-capanga é um instrumento eficaz para o filme expandir sua temática para além do racismo: representativo de uma polícia que mata cada vez mais negros nas periferias brasileiras, o vigia evoca também o asco que certa parcela da população nutre contra os mais pobres e uma divisão de classes que determinado segmento político deseja manter e reforçar. Os trechos do rádio que podem ser ouvidos enquanto o policial realiza rondas pela propriedade são cuidadosamente selecionados, e os produtores encontram, aqui, uma forma inteligente de traduzir em uma figura o que há de mais podre na realidade brasileira de 2018. A cena, final, entretanto, desaponta, e infelizmente não consegue atingir o nível de tensão que os produtores almejavam alcançar.
À medida que os contos vão se sucedendo e retrocedemos para períodos cada vez mais distantes, a abordagem temática do filme vai se afunilando para focar, de fato, em questões raciais. No segundo conto, dirigido por Gabriel Martins, é possível perceber, apesar disso, um recorte de gênero; muitos comumente se esquecem de que as mulheres negras estão sujeitas a opressões múltiplas por serem negras e mulheres. A história, que gira em torno de um casal desesperado que vai procurar emprego no engenho dos Vieira, lembra ainda o filme Corra!.
O protagonismo feminino é retomado no segmento dirigido por Ian Abé, que gira em torno de duas irmãs escravas que buscam vingança contra seus algozes. É a primeira vez em que o elemento sobrenatural é inserido - com sucesso limitado - no filme, que se passa num contexto de crise dos engenhos do Nordeste e remete ao ciclo da cana de açúcar de José Lins do Rego.
O quarto episódio, que se passa em 1871, é dirigido por Jhesus Tribuzi e parece ser o mais eficaz de todos por evitar recorrer a um certo exagero presente nas histórias anteriores: uma tentativa de inserção de elementos gore à la George A. Romero (ele mesmo um mestre em demonstrar que o cinema de horror tem muito a dizer) que, na maior parte das vezes, não funciona muito bem. É quando tenta assombrar pelo não dito, pelo misterioso e pelo simbólico que O nó do diabo atinge seu ponto máximo.
O segmento final gira em torno de um grupo de quilombolas fugitivos que se reúne em um cemitério de escravos após a destruição do seu quilombo por capangas de Vieira. Embora a simbologia de uma resistência negra em um cemitério de escravos seja louvável, a história dirigida por Ramon Porto Mota simplesmente não funciona, desapontando ao final da exibição. O desfecho é previsível e parece amadorístico, além de recorrer a uma representação estereotipada de religiões africanas.
O nó do diabo tem momentos irregulares e poderia ser mais curto (são 124 min.); além disso, o filme não é de fato assustador, e isso pode ser um ponto negativo para um filme de gênero; mas é belamente filmado, tem excelentes atuações e põe um dedo numa chaga ainda escandalosamente aberta no nosso país. Afinal, pra que horror maior que a história de opressão, racismo e escravidão que mancha o Brasil?
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