CULTURA
Opinião: Boechat foi para o inferno? Quero ir também...
Jornalista foi alvo de uma série agressões nas redes sociais após sua morte.
Publicado em 17/02/2019 às 9:55 | Atualizado em 18/02/2019 às 8:02
A ideia que temos a respeito do diabo é muito mais recente que os conceitos cristãos arraigados no Ocidente. Diabo e Inferno foram criados muitos (!!!) séculos após a criação do cristianismo. O purgatório então é ainda mais recente... Criações de lideranças religiosas interessadas no controle ideológico da população desinformada. Controle através do medo. Opressão vociferante.
O conceito de que o purgatório fosse um ‘lugar à parte’, por exemplo, somente tomou forma entre os séculos XII e XIII. Judeus acreditavam que aqueles que não eram nem bons ou maus seriam levados a um lugar onde a pessoa sofreria castigos temporários até que estivessem aptos para viverem no éden. Já os indianos, acreditavam que os merecedores do ‘purgatório’ poderiam viver uma série de reencarnações que os levariam até os céus ou ao inferno.
Viver sob controle é ter medo. E ser controlado envolve uma certa paz... um ar sossegado. Mas, assim como na letra da música de O Rappa, ‘paz sem voz é medo’. E prefiro manter minha alma armada e apontada para a cara desse falso sossego. Ter voz diante daquilo que acreditamos ser injusto e incorreto parece despertar em muita gente a ideia de que essa voz tem origem em algum lugar entre a rebeldia adolescente e o demoníaco.
Sou jornalista. E acredito ser papel social do jornalismo estar ao lado dos oprimidos e também ser olhos, boca e ouvidos da sociedade, em um grau de representatividade e transparência que faça valer a pena o exercício de vigilância e atenção permanente frente às regras e necessárias mudanças de regras. Jornalismo que vigie. Que investigue. Que avalie, critique e denuncie, de maneira responsável.
Aqui e alhures, muitos profissionais do jornalismo teimam em não atinar para essas necessidades, fazendo vergonha à categoria (e isso vale para todas as categorias profissionais). Gente que acha que faz jornalismo, mas apenas exercita mungangas informacionais e irresponsabilidades midiáticas, prestando um desserviço à sociedade. Comunicação do grotesco, que desinforma que não sabe e faz raiva a quem sabe...
E exatamente por causa disso, dói bastante quando profissionais de extrema qualidade partem desta vida... Profissionais como Ricardo Boechat, 66, que faleceu na última segunda-feira, dia 11, após a queda do helicóptero em que estava, na Rodovia Anhanguera. O corpo do jornalista Ricardo Boechat foi velado terça-feira, dia 12, no Museu da Imagem e do Som (MIS), nos Jardins, em São Paulo. Também na terça-feira, houve a cerimônia de cremação.
Ainda no dia de sua morte, Boechat – crítico do Governo Bolsonaro e também de pastores neopentecostais – foi alvo de uma saraivada de agressões através das redes sociais. Seguidores de pastores criticados por Boechat e também apoiadores da atual gestão federal trataram de disseminar o ódio em postagens que afirmavam que Boechat havia sido castigado por Deus e iria para o inferno.
Ódio sem limites. Ignorância também sem limites. Desrespeito sistemático. Intolerância tosca. Arrogância opressora. Boechat era apresentador do Jornal da Band e da rádio BandNews FM e colunista da revista "IstoÉ". Trabalhou nos jornais “O Globo”, “O Dia”, “O Estado de S.Paulo” e “Jornal do Brasil”. Na década de 1990, Boechat teve uma coluna diária no "Bom Dia Brasil", na TV Globo, e trabalhou no "Jornal da Globo". Foi ainda diretor de jornalismo da Band e teve passagem pelo SBT. Ele ganhou três vezes o Prêmio Esso, um dos principais do jornalismo brasileiro.
Estamos falando de um profissional extremamente qualificado e que conquistou o respeito de quem ousa pensar ‘fora da casinha’. Conquistou credibilidade (que é maior prêmio que um jornalista pode conquistar). Pois bem... para muita gente – nas redes sociais – Ricardo Boechat foi para o inferno!
Postagens afirmaram que Boechat morreu por ter criticado os ‘ungidos por Deus’. Gente que se diz ‘do bem’ e que garante acreditar em Deus postando violências e celebrando uma espécie de vingança. Maldade triplamente qualificada! Gente que fala de amor, mas que festeja a morte de alguém.
Um dos apoiadores, defensor de Bolsonaro, teria postado no Twitter: “Carlos Bolsonaro, o Boechat acabou de morrer na queda de um helicóptero. Pena que a Mônica Bérgamo não estava junto. Um filho da puta a menos para criticar o Bolsonaro”. Depois, teria pedido desculpas: “Fui péssimo, e desculpem o comentário. Odeio jornalistas de esquerda, nem por isso a morte se justifica. Sou do bem e falei merda. Desculpe realmente ao povo do Tweeter”.
Em tempo: a viúva de Boechat, Veruska Boechat, afirmou durante a cerimônia que ele foi o ateu que mais praticava o amor ao próximo. “Meu marido era o ateu que mais praticava o mandamento mais importante de todos, que era o amor ao próximo, porque sempre se preocupou com todo mundo, sempre teve coragem. E é muito difícil fazer o que ele sempre tentou fazer”, disse.
Boechat, o ateu, esteve mais perto de Deus (em seu exercício profissional) mais que todos aqueles cristãos que postaram festinholas a respeito de sua morte. E se existe inferno e se é para lá que gente como Boechat vai – acreditem!!! - é para lá que eu quero ir...
* Jamarrí Nogueira escreve sobre arte e cultura no Jornal da Paraíba aos domingos.
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