VIDA URBANA
Crianças e adolescentes têm depressão, mas é confundida com características da idade
Sintomas são confundidos com nuances da personalidade e com acontecimentos pontuais.
Publicado em 25/09/2019 às 7:00 | Atualizado em 25/09/2019 às 18:55
Já ouviu alguém falar que a infância é a fase mágica da vida? E que a adolescência é um período bastante complicado? Provavelmente sim. Parece que a ingenuidade e a inocência da criança a reveste de uma aura que a imuniza dos “problemas de adulto”. E os adolescentes? Ah, os “aborrecentes”... Revoltados consigo e com o mundo, cheios de crise de construção da identidade, hormônios exacerbados e emoções intensas.
Essas são algumas das ideias que pairam no senso comum. Depressão dá em criança? De forma alguma! Ela nem sabe o que é isso, como poderia ter? Criança brinca, pula, corre. É um ser feliz, puro. Não há como esse mal atingi-la. Às vezes, ela fica amuada pelos cantos. Não quer se integrar com os outros, prefere assistir televisão. Outras vezes, ela é malcriada, “genista”, responde os pais e gosta de chamar atenção. Mas ainda assim, é uma criança, não está sujeita à depressão. Será? Este é o tema da segunda reportagem da série 'As Faces do Vazio'.
(Esse texto faz parte da série 'As Faces do Vazio', produzida por Douglas de Oliveira originalmente como trabalho de conclusão no curso de Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba.)
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o índice de crianças entre 6 e 12 anos diagnosticadas com depressão quase dobrou na última década; saltou de 4,5% para 8%. Isso pode revelar tanto uma redução das subnotificações, devido ao maior acesso à informação sobre o transtorno, quanto um aumento significativo das crianças acometidas pela doença devido a transformações sociais e culturais que refletem no crescimento delas. Esse público já tem chamado atenção do setor de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do município de João Pessoa.
Sinais para diagnosticar
Alessandra Cruz, graduada em enfermagem e técnica em saúde mental da rede pública, reflete sobre essa demanda crescente. “A nossa maior preocupação nesse momento é com a meninada porque ela tem invadido todos os espaços. Você chega na escola e percebe que cresceu muito o número de tentativas de suicídio. Por que essa meninada tá tentando suicídio? Por que a criança tá o tempo todo num celular ou num videogame? Ela não tem outra coisa pra fazer? Não tem adultos pra olhá-la, não tem outras coisas que devem ser postas? Muitos pais dizem: ‘Ah, eu dei esse celular ao meu filho, mas ele é muito responsável’. Qual a responsabilidade e o entendimento que tem uma criança de 10 anos pra saber que aquilo de ficar três, quatro, cinco horas no celular faz com que ela não consiga comer, dormir, fazer a tarefa, conversar...? Isso é prejudicial", destaca.
'Criança com armadura'
O inconformismo de tentar cobrir a criança com uma armadura que não lhe cabe dificulta a observação familiar de comportamentos que podem ser resultantes de um transtorno mental. Os sintomas são confundidos com nuances da personalidade e com acontecimentos pontuais como desentendimentos com colegas ou doenças físicas. E podem sê-lo realmente.
Mas é necessário que a atenção da família seja mais abrangente e não esbarre em preconceitos. Isso porque o primeiro olhar para identificar a depressão infantil parte dos adultos que rodeiam a criança. Pais, avós, irmãos, tios, professores. Como os pequenos não conseguem descrever seus sentimentos, eles os apresentam através de sinais. O psiquiatra infanto-juvenil, Manoel Galdino, diz que diagnosticar a depressão nessas pessoas é como montar um quebra-cabeças.
“Quando está brincando ou em alguma atividade, a criança às vezes não apresenta os sintomas. Mas quando vai pra casa ou não está num ambiente de convívio com os colegas, ela começa realmente a ter um quadro de isolamento, humor deprimido. Junto a isso, nós observamos sintomas físicos, como dor de barriga, que são mais comuns em crianças do que em adultos”, explica Galdino.
Sinais físicos de sofrimento
Reações como ânsia de vômito, coração acelerado, dores de cabeça ou de garganta frequentes, ou coceira na pele não se restringem a causas físicas. Elas podem estar associadas a questões emocionais. Chamam-se doenças psicossomáticas e acometem constantemente pessoas com depressão ou ansiedade. Para descartar hipóteses de virose, gripe ou infecções, o psiquiatra solicita exames bioquímicos. Quando não se encontra alteração nos níveis encontrados no sangue, há maior possibilidade da existência de um transtorno mental.
A história de Júlia
Assim como a infância, a adolescência é repleta de surpresas. Fase de sensações intensas e aumento do convívio social. Período também em que os jovens se agridem por razões das quais se envergonham na idade adulta. A crueldade do bullying divide as salas de aula entre vilões e mocinhos; e na maioria dos casos, os vilões são mais felizes. Aparentemente, esse 'bangbang' que, aos olhos dos adolescentes, parece questão de vida ou morte é um fator preponderante no desencadeamento da depressão nessa faixa etária. Mas não o único.
Júlia prefere não revelar a causa específica que teria desenvolvido nela um quadro depressivo. E talvez essa não seja a incógnita mais relevante. A menina franzina de 15 anos que adora ouvir música, escrever e desenhar começou a perder o prazer de desempenhar essas atividades. Sem perceber.
“Eu fui agindo de acordo comigo mesma. Eu não notava as mudanças. Só mudava”, disse ela, com a a voz baixa, tímida e convicta ao mesmo tempo. “Desanimando com umas coisas, procurando passar tempo fazendo qualquer coisa que me distraísse. Mesmo assim, nada resolvendo. Só...”, completa.
Mudança de comportamento
A mãe de Júlia percebia algumas alterações em suas atitudes. A adolescente não queria mais ir à escola. Dona Sônia achava que ela estava sofrendo bullying por ser a mais velha da turma. Explicou a situação à diretora, que garantiu a intervenção da psicóloga escolar. Isso nunca aconteceu e dona Sônia resolveu tirar a filha da escola.
Noutro dia, Júlia apresentou sinais de uma crise de pânico em um supermercado. Com falta de ar e pressão baixa, chegou a desmaiar. Algumas pessoas que compravam no local perguntaram a dona Sônia se sua filha estava com fome. Ela sabia que não. A irmã mais velha de Júlia já passara por crises semelhantes e fazia acompanhamento psicológico.
Aconselharam que a mãe procurasse o Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi). Desde junho de 2017, a adolescente faz terapia e as melhorias são notórias. Quando chegou ao CAPSi, Júlia havia se esquecido de si. Inclusive da higiene pessoal. Descuidara-se, como outrora não costumava fazer.
Embora o foco dos CAPS seja a terapia em grupo, devido ao pilar da socialização e à alta demanda de usuários, Júlia foi encaminhada inicialmente ao atendimento individual. Sua situação necessitava de um olhar singular. Encontrou-se com a psicóloga Glaura Neves. E, junto com ela, Júlia deu passos lentos, porém firmes, em direção a si mesma, para descobrir-se novamente, conhecer-se melhor.
Nas primeiras sessões, utilizando técnicas projetivas – expressão emocional através de desenhos –, Glaura propôs que a adolescente pusesse seus sentimentos no papel. Os rascunhos originaram um caderno com um lápis. Entretanto, as folhas do caderno estavam vazias.
A psicóloga perguntou se ela queria escrever alguma coisa, mas a menina não queria, ou não conseguiu. “Naquele momento, eu vi um vazio. Eu acho que o caderno se tratava de mim mesma porque era um vazio que eu não podia escrever, preencher, nem nada... Mas agora eu sinto que eu posso escrever cada parte daquilo”, dia Júlia, um ano e alguns meses depois da sessão.
Arte e emoção
A adolescente falou com empolgação sobre essa prática artística e emotiva tão singular. Diz que as terapias no CAPSi a incentivaram a desenhar, no espaço de um mês, mais do que o fizera durante muitos anos de sua vida. Em suas mãos, a ponta do lápis grafite construía faces vazias de artistas famosos, cabeças sem olhos, nariz ou boca. Rostos sem semblante. Tão indefinidos quanto a depressão. No decorrer do tratamento, eles ganharam contornos. Faces preenchidas de sentido.
“Eu fico até surpresa com o que ela está falando aí. Eu não sabia que era tão importante pra ela esses desenhos que ela faz. Eu vejo, acho interessante, eu gosto. Também me interesso por arte. Mas agora eu tô entendendo... Porque todos os desenhos dela não têm rosto”, disse dona Sônia. “Nem todos”, completou Júlia. “É, ela trouxe uns que tinham. Mas é porque todo desenho tem seu significado. Alguns não têm rosto mesmo. Porque você ainda está se encontrando, diga a sua mãe", falou Glaura Neves.
Troca de experiências
Júlia respondeu com um sorriso tímido, os olhos para o chão e depois erguidos na linha de sua cabeça. Ela tem firmeza na fala. Glaura percebe isso nos grupos terapêuticos. A adolescente intervém nas falas dos colegas e, assim, ajuda a si e aos outros. O caderno outrora vazio ganhava agora páginas da história que estava esquecida, adormecida pelo transtorno.
“Uma coisa que eu desejo muito, muito para o futuro... Eu tento diminuir pensar nisso porque eu quero poder fazer o que tá ao meu alcance agora. Por enquanto, o meu sonho é me sentir realizada nesse momento. Eu quero voltar a estudar, entrar numa escola de dança”, diz Júlia, nadando contra a ansiedade causada pelo excesso de sonhos distantes.
Pela verdade da própria história, a adolescente ensina aos adultos que o vazio de um caderno é preenchido parágrafo a parágrafo. E, graças à atenção e ao cuidado que recebeu, o de Júlia só está começando.
* Com edição de Jhonathan Oliveira
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