CULTURA
Eu vos saúdo, Godard
Pela primeira vez no Brasil, exposição em cartaz no Rio de Janeiro revela a fase pós-nouvelle vague do cineasta franco-suíço
Publicado em 12/05/2013 às 10:57 | Atualizado em 13/04/2023 às 15:51
RIO DE JANEIRO - Há 30 anos Jean-Luc Godard trabalha incansavelmente em seu ateliê em Genebra, Suíça, distante de seus pares, sem contato com grandes produtoras, nutrindo uma relação próxima ao desprezo com os críticos dos seus filmes.
Na mesa do mago da nouvelle vague, em vez de câmeras e rolos de filme, maços de papéis misturam-se a tesouras e tubinhos de cola. O que parece ser o ambiente de um jardim de infância é o escritório do gênio. Godard está em franca ebulição.
O diretor franco-suíço, que este mês exibe sua primeira experiência em 3D no Festival de Cannes, é tema de uma mostra inédita no Brasil que abandona o lugar comum em torno de sua obra e concentra-se justamente na produção recente de sua carreira. A Expo(r) Godard - Viagens em Utopia, em cartaz até o mês de julho nos três andares do Oi Futuro Flamengo, no Rio de Janeiro, homenageia com exposição, retrospectiva e ciclo de palestras, um cineasta que estava predestinado a encontrar no cinema a ferramenta que conciliasse sua versatilidade e o seu ímpeto transformador.
“Antes de escolher o cinema, Godard quis ser escritor e pintor”, declarou o curador Dominique Païni na visita que o JORNAL DA PARAÍBA fez exclusivamente à mostra, aberta esta semana ao público. “Ocorre que, nos anos 1950, os lugares estavam tomados por Picasso, nas artes plásticas, e pelo 'nouveu roman', na literatura. Restava o cinema para ser o lugar de criação, tensão e evolução do século 20”, resume o francês, que trabalhou com Godard na concepção original da mostra, apresentada em 2006 no Centre Georges Pompidou, em Paris.
Agrupada em três grandes temas (o olhar autoral de Godard sobre a própria obra, o olhar analítico sobre a história do cinema e uma síntese das duas vertentes), a exposição reúne colagens, projeções, vídeos e farto acervo impresso que documentam as incursões de Godard por outras artes antes de chegar ao resultado exibido em seus últimos filmes.
“Godard está mais próximo de Picasso do que dos outros cineastas”, afirma Païni, caminhando próximo à vitrine que ostenta um dos volumes da edição rara da ‘Cahiers du Cinema’ de número 300, lançada em 1979, que foi confeccionada manualmente por Godard e nunca havia sido exposta. “Tudo o que ele fez no século 20 nos convida a continuar seu trabalho no próximo século. Picasso é o artista que mais nos convidou a pintar neste século. Godard é o artista que mais nos convidou a filmar”.
Correspondente à sessão de um longa-metragem de uma hora e meia, o passeio pela Expo(r) Godard revela uma personalidade temperamental e perfeccionista, que edita os próprios trailers e projeta ele mesmo os press-books de seus filmes, concebidos não apenas como uma forma de divulgar os longas, mas como uma ferramenta de ‘pensar a realidade’, remetendo-se à estética dos fanzines.
“Só foi possível existir um artista assim como Godard por causa dos meios técnicos de reprodução”, explica Païni. “O instrumento predileto de Godard é a fotocopiadora”, diz diante das oito telas que exibem, cada uma, um capítulo de História(s) do Cinema, obra multimídia que demorou quase 20 anos para ser concluída e que partiu de livros, cujas bonecas eram montadas por um Godard pouco afeito às regras do mercado editorial.
"Godard pouco se lixa"
“Godard pensa manipulando a imagem, atuando quase como um montador. Ele dispõe as imagens em uma mesa antes de filmá-las. Tudo, em Godard, parte do papel”, esclarece Dominique Païni, que sentiu o entusiasmo primitivista do colega quando acompanhou por três anos a fabricação da maquete da exposição que iria se chamar Collage(s) de France, um trocadilho com o College de France, instituição de alto nível que rejeitou um curso proposto pelo cineasta, despertando sua ira.
“Quando vi aquela maquete feita por ele, eu imaginava que a exposição jamais iria acontecer. Eu tinha o sentimento de que a maquete, e não a exposição, era a sua verdadeira obra. Não seria necessário reproduzi-la em tamanho real para ter a dimensão exata daquele trabalho”, enaltece, com os registros de uma miniatura da exposição se desenhando ao fundo, em uma TV de tela plana.
Para a direção de Godard, a imagem tem o mesmo peso do som. Na penumbra de uma cabine do segundo pavimento, isolada acusticamente, tudo o que se “vê” são trechos de diálogos, sonoplastia e trilha sonora. “O som tem autonomia em Godard, que costuma dizer que é necessário ver o filme três vezes para compreendê-lo em sua totalidade: primeiro prestando atenção nas imagens, depois no som, depois nas duas coisas juntas”, salienta o curador.
A figura do mestre, com seus óculos de armações grossas e um charuto pendendo no canto da boca, alterna-se com a de seus discípulos: críticos brasileiros que comentam a recepção de suas ideias nacionalmente, entre cabeças como a de José Leme, primeiro a acolher seu ideal revolucionário, crítico celebrado durante o ciclo de palestras organizado pela Oi Futuro, no Rio.
O INCOMPREENDIDO
“Godard sabe que é um dos cineastas vivos mais conhecidos, mas que pouca gente realmente viu os seus filmes”, conta Païni, que corrige a intérprete quando ela chama de “narrativa” a primeira fase do cineasta, evidenciada em uma retrospectiva que exibirá seus filmes realizados entre 1959 e 1967. “Quando Acossado foi lançado, no final dos anos 1950, foi um escândalo, porque as pessoas não endendiam o filme, diziam que não era ‘narrativo’. Daqui a 30 anos, os filmes que hoje a gente não considera narrativos já serão considerados como tal".
O descompasso entre o jeito desaforado de fazer cinema e as expectativas do público e da crítica em relação à sua linguagem contestadora é traduzido pela frase que Godard costuma repetir, e que Païni reproduz gargalhando em eco: "Ele diz que, quando criança, os adultos insistiam em lhe pedir que parasse de contar histórias, enquanto que agora, depois de adulto, é justamente isso que pedem para ele fazer nos filmes".
O Godard bufão, que incorpora um personagem dele mesmo ao aparecer em programas de TV e que fez um dos cinemas mais autoreflexivos da história da sétima arte, brigou com distribuidoras e não tem mais direitos sobre a sua filmografia, que muitas vezes incentivou que fosse pirateada pelos cinéfilos.
"Godard nunca se interessou pelo destino dos filmes dele", sugere Païni. "Ele sempre se entristecia pelo tratamento que as distribuidoras davam aos títulos e então, assim que terminava uma filmagem, já começava outra. Godard pouco se lixa com a crítica mas, apesar disso, está sempre fazendo críticas", complementa Païni, que revela a profunda ojeriza que o diretor sente por Stanley Kubrick (1928-1999). "Ele fala que Kubrick não filmou a guerra. Ele é a própria guerra".
A Expo(r) Godard não tem previsão de circular por outras regiões do Brasil, mas a proposta está sendo estudada pelo curador antes de o projeto retornar para a França. "É importante que a exposição volte para a Europa, já que a França também precisa reconhecer mais a riqueza da obra de Godard". (O repórter viajou a convite da organização do evento)
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