COTIDIANO
Chico Buarque, discos e canções
Publicado em 19/06/2016 às 20:40 | Atualizado em 31/08/2021 às 7:49
Em 1968, aos 24 anos, Chico Buarque gravou uma música chamada “O Velho”. “O que é que tem de novo pra deixar/nada/só a caminhada longa/pra nenhum lugar”. Ou: “eu vejo a triste estrada/onde um dia eu vou parar”. Um jovem escrevendo sobre a velhice. Versos belos e surpreendentes que nos ocorrem agora. Junto a lembrança a uma outra do jovem Chico: a quantidade de grandes músicas que ele gravou entre os 22 e os 24 anos, em apenas três discos. Naquela época, era muito comum o disco ter o nome do artista. “Chico Buarque de Hollanda volume 1” (1966), “Chico Buarque de Hollanda volume 2” (1967) e “Chico Buarque de Hollanda volume 3” (1968). Os três, lançados pela RGE em plena era dos festivais, a partir do sucesso que alcançou ao vencer um deles com “A Banda”.
Vale a pena enumerar, recorrendo exclusivamente ao que está arquivado na memória afetiva, sem qualquer consulta: “A Banda”, “Tem Mais Samba”, “A Rita”, “Madalena Foi pro Mar”, “Pedro Pedreiro”, “Olê, Olá”, “Meu Refrão”, “Sonho de um Carnaval”, “Noite dos Mascarados”, “Com Açucar, com Afeto”, “Quem te Viu, Quem te Vê”, “Morena dos Olhos D’Água”, “Ela Desatinou”, “Retrato em Branco e Preto”, “Januária”, “Carolina”, “Roda Viva”, “Até Pensei”, “Sem Fantasia”, “Até Segunda-Feira”, “Funeral de um Lavrador”. Somemos a estas “Sabiá”, que é de 1968, mas não está no disco daquele ano. São 22 músicas. Todas gravadas entre os 22 e os 24 anos. Se Chico Buarque tivesse se aposentado em 1968, seu legado seria um songbook extraordinário. À altura dos maiores clássicos do nosso cancioneiro popular.
Se estendermos a lista até 1970, quando troca a RGE pela Philips e grava o último disco usando o “Hollanda” no nome artístico (“Chico Buarque de Hollanda volume 4”), acrescentaremos, então, “Essa Moça Tá Diferente”, “Agora Falando Sério”, “Gente Humilde”, “Rosa dos Ventos”, “Samba e Amor”, “Pois É”. E, claro, há o single de 1969, ainda pela RGE, com “Umas e Outras”. Entre 1966 e 1970, dos 22 aos 26 anos, em quatro discos, 29 músicas absolutamente antológicas. Um gigante este artista.
Em 1971, passa a assinar apenas “Chico Buarque”. O bigode na capa do disco tira um pouco o ar de bom moço. Os sons o aproximam da linha evolutiva proposta pelos tropicalistas. Ao seu modo. Sobretudo na faixa “Construção”, arranjada pelo mesmo Duprat dos discos de Caetano, Gil, Gal e Mutantes. “Construção” é uma obra-prima. Um samba lento que vai crescendo até o desfecho. Os versos finalizados sempre com proparoxítonas que, na segunda e na última parte, são trocadas de lugar, gerando imagens absurdas, delirantes, inacreditáveis. O disco “Construção” pode ser o melhor de Chico. “Deus lhe Pague”, “Cotidiano”, “Desalento”, “Cordão”, “Olha Maria”, “Samba de Orly”, “Valsinha”, “Minha História”. Parece uma coletânea.
Os anos 1970 foram os mais produtivos. Apesar da censura. “Construção” (1971), “Quando o Carnaval Chegar” (1972), “Calabar” (1973), “Sinal Fechado” (1974), “Meus Caros Amigos” (1976), “Chico Buarque” (1978), “Ópera do Malandro” (1979), “Vida” (1980). Mais dois discos ao vivo. Um com Caetano Veloso, outro com Maria Bethânia.
Os anos 1980 não são tão produtivos. O artista compõe e grava menos. Trabalha muito com Edu Lobo, o novo parceiro. Fica mais sofisticado. As canções continuam belas. “O Grande Circo Místico” é uma estupenda coleção de canções. Anos 1990 e além. Um livro, um disco, uma turnê. Nesta ordem. A morte da canção? Tese dele.
Na maturidade e no limiar da velhice, Chico faz discos refinadíssimos, de assimilação mais lenta. E não compõe tantos clássicos instantâneos, como os da juventude. Mas seu último disco, de 2011, tem ao menos um: “Sinhá”, parceria com João Bosco.
Chico Buarque é um compositor popular clássico. Não é de ruptura, como seu contemporâneo Caetano. É difícil comparar as canções dos dois. “As dele são bem feitas, há uma paz, uma coerência, uma sabedoria que as minhas desconhecem”, me disse Caetano Veloso. Esteticamente, Caetano é de esquerda, Chico é de centro, como classificou Gilberto Gil, muitos anos atrás.
A lista de dez canções que os críticos fazem é injusta com Chico. É uma impossibilidade. Não há dez. Há dezenas. Os sambas perfeitos de quem ouviu Noel, mas sentiu o impacto da reinvenção do gênero promovida por João Gilberto. E tem as incursões por outros gêneros, outros ritmos. Toada, baião, frevo, marcha, valsa, blues, rock. E tem o letrista de qualidade excepcional, como os melhores do mundo. E o trabalho com grandes parceiros. Tom, Vinícius, Francis, Edu, Milton, Caetano, Gil, Ruy. E o teatro, a literatura, o engajamento na luta contra a ditadura.
“Eu vejo a estrada/onde um dia eu vou parar”. Chico se aproxima do homem velho da canção escrita na juventude? A obra por certo desmente o verso que diz que não há nada para deixar. “Além da caminhada longa/pra nenhum lugar”.
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