COTIDIANO
Uma lembrança: Sivuca e sua sanfona
Publicado em 20/06/2016 às 6:58 | Atualizado em 31/08/2021 às 7:49
Os dedos da mão direita correm velozes pelas teclas. Na valsa “Quando Me Lembro”, de Luperce Miranda, há uma parte em que o instrumento soa como dois bandolins. O que se tem naquela execução é um momento impressionante, mas não raro, de precisão e virtuosismo. Na “Tocata em Ré Menor”, a sanfona lembra um órgão de igreja. Antes de Sivuca, talvez fosse difícil imaginar a peça de Bach como se houvesse sido escrita para sanfona solo. Em “I Do It For Your Love”, de Paul Simon, o instrumento funde-se à voz e soa como um sax alto. Em “Feira de Mangaio”, da parceria com Glorinha Gadelha, a introdução, escrita numa lanchonete em Nova York, transporta o ouvinte para um forrozão do interior do Nordeste.
Sivuca explorou todas as possibilidades do acordeon e transformou-se num instrumentista no nível dos grandes do jazz. Também tocava violão e piano, mas a sanfona é que era extensão do seu corpo, como o sax de Coltrane, a guitarra de Hendrix ou o bandolim de Jacob. Nas entranhas dela é que estava sua alma de artista. Uma história iniciada no dia em que o pai voltou para casa com um pequeno fole de dois baixos. Era dia de Santo Antônio em Itabaiana. Uma terça-feira, 13 de junho de 1939. O menino Severino, que ainda não era Sivuca, acabara de completar nove anos.
Sivuca guardava na memória todas as informações sobre cada um dos instrumentos que teve. As marcas, as procedências, as cores, a quantidade de baixos, as circunstâncias em que entraram na sua vida. Sabia que era preciso legá-las à posteridade. Guiado por esta convicção, já doente, um dia ele ditou, e Glorinha Gadelha fez as anotações.
Acordeon, concertina, sanfona. Um instrumento muito popular no Brasil, não só entre os nordestinos que, a partir do final dos anos 1940, incorporaram as canções de Luiz Gonzaga ao seu repertório. Houve um tempo em que as garotas estudavam acordeon e com ele exibiam seus dotes musicais, tocando e cantando nas reuniões familiares. Artistas que depois ficaram conhecidos com o violão começaram pelo acordeon. É o caso de Gilberto Gil e Milton Nascimento, que só aderiram ao violão depois da Bossa Nova, sob a inspiração da batida criada por João Gilberto. Sivuca também fez a adesão quando morava nos Estados Unidos.
Mas foi com a sanfona que entrou para a história da nossa música popular. E para a história mundial do instrumento. Os sons que produzia eram inconfundíveis. Tinham a sua marca, o seu estilo. Diferente de Gonzaga, fundador, mas rudimentar. Ou de Dominguinhos, virtuoso, mas intuitivo. Era o “modo Sivuca” de tocar, iniciado naquele dia de Santo Antônio de 1939, quando o pai trouxe para casa o fole de dois baixos. Até a sua morte, em dezembro de 2006, foram 67 anos de convivência com o instrumento. Um longo percurso, que começou com o menino procurando as notas da marcha “A Jardineira” e terminou no encontro da sua Scandalli Super VI com a complexidade de uma orquestra sinfônica.
Na foto (de André Cananéa), entrevisto Sivuca duas semanas antes da sua morte.
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