QUAL A BOA?
Narciso em Férias é belo e corajoso filme sobre a prisão de Caetano pela ditadura militar
Publicado em 07/09/2020 às 23:09 | Atualizado em 22/06/2023 às 12:52
No Sete de Setembro de 1984, fui ao cinema ver Memórias do Cárcere.
O regime militar vivia seus estertores, e Nelson Pereira dos Santos voltava a Graciliano Ramos para falar dos horrores de uma outra ditadura (a do Estado Novo).
No final, a fantasia de Gottschalk sobre o Hino Nacional Brasileiro parecia celebrar as liberdades que a redemocratização logo nos devolveria.
No Sete de Setembro de 2020, sem sair de casa, vejo num serviço de streaming o documentário Narciso em Férias.
Num momento em que um governo de ultradireita fragiliza a nossa jovem democracia, os diretores Ricardo Calil e Renato Terra transformam um capítulo do livro de memórias Verdade Tropical, de Caetano Veloso, num filme extremamente necessário e oportuno.
Junto, aqui, um filme com o outro, apesar de todas as diferenças que os separam, não só por causa da coincidência do Sete de Setembro, mas porque é como se um nos colocasse diante de uma porta que se abria, enquanto o outro nos põe frente ao risco de que esta porta seja novamente fechada.
Narciso em Férias se debruça sobre o episódio da prisão de Caetano Veloso (e Gilberto Gil) pelos militares, em dezembro de 1968, apenas duas semanas após a decretação do AI-5.
Na forma, Calil e Terra fizeram um filme incomum. Na edição, trouxeram para 82 minutos as seis horas que gravaram com Caetano e se convenceram de que não precisavam entrevistar mais ninguém, nem recorrer a imagens de arquivo. Sentado, com um enorme paredão ao fundo, o artista conta a história e pronto. Isso basta.
No conteúdo, Narciso em Férias é devastador. Já era, 23 anos atrás, quando lido como capítulo de Verdade Tropical. Agora, a fala de Caetano junta-se ao texto primoroso do seu livro de memórias. Os dois se completam.
Em meados da década de 1980, Gilberto Gil disse que Caetano Veloso era quem estava mais à esquerda entre os artistas brasileiros da sua geração. Falava de estética. Mas sempre achei que a classificação de Gil valia também para política. Caetano é o mais destemido, o mais corajoso, o que exerce melhor a sua liberdade de dizer as coisas que pensa.
Essa coragem, esse destemor, é o que temos nesse, a um só tempo, belo e contundente documentário.
Enquanto, do lado da barbárie, a gente ouve tanta gente falar de volta da ditadura, de um novo AI-5, fechamento do Congresso, fechamento do Supremo, Caetano, com seu relato muitíssimo bem construído e cheio de emoção, diz não a tudo isso e reafirma tanto o seu compromisso permanente com as liberdades quanto o seu desejo de que o Brasil encontre uma trilha clara em seu destino como nação.
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As músicas do filme:
Súplica é o que se ouve na abertura, com Orlando Silva.
Ao violão, Caetano canta Hey Jude, dos Beatles, e as suas Irene e Terra.
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Narciso em Férias foi lançado neste Sete de Setembro no Festival de Veneza e está disponível no Globoplay.
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