SILVIO OSIAS
"O orgasmo feminino era dos assuntos não ditos. Não falados. E salvava-se quem podia, desbravando o corpo..."
Publicado em 14/09/2020 às 17:43 | Atualizado em 30/08/2021 às 20:54
Por causa da morte da feminista Shere Hite, autora do célebre Relatório Hite, abro espaço para esse texto de Ana Adelaide Peixoto.
SHERE HITE E O ORGASMO FEMININO
Ana Adelaide Peixoto
Morreu no último dia 09/09 a americana Shere Hite, que ficou mundialmente famosa quando da publicação do Relatório Hite - Profundo estudo sobre a sexualidade feminina. Shere contestou os mitos da sexualidade feminina e logo se tornou um best-seller com mais de 48 milhões de cópias vendidas e traduzido para outro tanto de dúzias de línguas.
Desde a publicação do Os relatórios Masters & Johnson que não tínhamos uma discussão dessa magnitude orgástica, ainda mais quando três mil mulheres, sob o manto do anonimato, responderam um questionário pra lá de ousado, e que puderam passear, com franqueza e abertura, por suas experiências sexuais secretas da alcova. E Shere advertia: “Os pesquisadores devem parar de dizer às mulheres o que elas devem sentir sexualmente e começar a perguntar o que elas sentem sexualmente.” Claro que o Relatório foi muito criticado e enveredávamos por uma selva por sempre dominada pelos homens, e, além do mais, as mulheres mostravam sem trava na língua as suas inoperâncias quando o assunto era o prazer feminino. Tão longe e tão perto!
Quando esse Relatório Hite me chegou às mãos, virou uma mágica. O que já se sabia na prática, fora explicado e atestado por pesquisa, e tendo à frente uma mulher feminista e com toda propriedade e coragem.
Sou de uma geração que viveu sua sexualidade após a pílula, início dos anos 1970. E que não casou virgem. Mas, por aqui, ainda tínhamos forte opressão por parte das famílias, dos colégios de freiras, e também dos namorados, que viam suas namoradas como propriedades. E, sim, tinha a moça pra casar e a pra fazer sexo. Mas começamos a desbancar essa dicotomia e a transar com os namorados; viva nós que tivemos a liberdade na marra de ter vida sexual saudável antes de casar. Digo saudável e livre, mas em parte. Tinha o silêncio constrangedor; as mentiras; o medo de ficar grávida; as fugidas – aquelas que não enfrentavam os pais e fugiam para ter sexo com os namorados; e a ignorância sexual nossa e a dos parceiros. A cama estava feita!
O orgasmo feminino era dos assuntos não ditos. Não falados. E salvava-se quem podia, desbravando o corpo, com a não menos demoníaca masturbação feminina. Um dia por vez. Uma frustração aqui. Um ritmo acolá. Mas, nas caladas das noites, as interrogações surgiam. Como fazer para se ter aquele orgasmo espetacular? Aquele ritmado e ao mesmo tempo do masculino (que na maioria das vezes era vapt vupt – pela ansiedade, pela dificuldade e pelo escondido da coisa?). Claro que, esse orgasmo não acontecia. Hoje, a frustração deve acontecer vendo aquelas cenas dos tons de cinza, quando o homem pega a mulher com força contra a parede, e ela, escanchada num vácuo, e todo o desconforto possível, geme junto, e faz caras e bocas sincronizadas com o outro. Sim, aquele que quase sempre está preocupado com o seu prazer. Pelo menos antes do Relatório Hite. Gracias a la vida, o mundo mudou. Os homens também. E nós, mulheres, nos tornamos protagonistas também dessa maravilha que é a vida sexual entre pessoas de quaisquer sexo/gênero que tenha.
Tive o meu exemplar do Relatório por anos. E era todo riscadinho. Adorando ler sobre clitóris; massagens; ritmos; a falácia do orgasmo vaginal (digo falácia pois até ele, que parece fácil, é atrelado a outros nervos e preliminares). O que mais gostei do livro (o meu sumiu há anos da estante – passei de mão em mão, literalmente! e perdeu-se na curva do rio....), era a sinceridade das mulheres relatando a relação sexual de mão única. O desconhecimento do corpo (sim! Até hoje, muitas mulheres não se tocam); e a tristeza e descontentamento com o sexo. Conheci muitas mulheres que não gostavam de sexo. E, depois de Hite, sabíamos que a frigidez e a expressão “mulher boa de cama” foram criadas por homens. Não existe tal mulher. Existem homens apressados, falocêntricos e com síndromes do macho alfa, que não têm a delicadeza e selvageria necessárias (sim, assim mesmo na ambiguidade) de acarinhar uma mulher. Sou grata a esse Relatório. E fiquei bem triste quando soube da morte de Shere. Doente de Alzheimer e Parkinson.
Que siga na luz! Do prazer!
Ana Adelaide Peixoto é professora aposentada da UFPB e cronista.
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