SILVIO OSIAS
Todas, todos e TODES. Um debate frutífero e, sim, socialmente inclusivo
Publicado em 06/08/2021 às 6:07 | Atualizado em 30/08/2021 às 20:46
Nesta quinta-feira (05), usei linguagem neutra (Todas, todos e TODES) no título de uma postagem que fiz aqui na coluna.
Muita gente não reconhece, mas é um tema importante, sim. E que precisa ser discutido sem preconceitos.
Convidei Luísa Gadelha, que é mestra em Linguística, para entrar no debate, e a resposta dela é este artigo que publico nesta sexta-feira (06).
TODAS, TODOS E TODES
Luísa Gadelha
Uma das lembranças mais marcantes que ficaram da minha graduação em Letras é uma metáfora utilizada pelo linguista Marcos Bagno. Ele diz que a língua é como um rio que sempre se renova e a gramática, por outro lado, seria como a água do igapó, envelhece, não gera vida, é infértil.
Com isso, Marcos Bagno quis dizer que as línguas são mecanismos vivos, fluidos, que evoluem e se transformam em conjunto com a sociedade, carregando seus valores e, também, seus preconceitos. A gramática normativa, por sua vez, corre o risco de tornar-se inerte, com vocábulos e expressões que caem em desuso, ou cujos significados se alteram com o passar do tempo. E, se pararmos para pensar bem, falamos uma espécie de latim distorcido, coloquial, que não segue as declinações originais: foi assim que nasceram as línguas neolatinas.
Mais tarde, quando iniciei meus estudos sobre feminismo, percebi como a língua portuguesa carrega traços do machismo arraigado em todos – ou todas, e todes - nós: o masculino é universal.
Podemos ter cem mulheres e um homem em um ambiente, vamos sempre utilizar o pronome masculino para nos referir a essas pessoas. Usamos a palavra “homem” para aludir à humanidade. A literatura produzida por homens é dita universal, enquanto aquela de autoria feminina é relegada ao nicho da “literatura para mulheres”. Quando a primeira presidenta eleita no Brasil fez questão de ser assim chamada, gramáticos conservadores a inundaram de críticas – ora, esquecem que Machado de Assis já utiliza a palavra “presidenta” em Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance de 1881! E, reparem bem em como, ao tempo em que se acreditava que a palavra presidenta não existia, em pouco mais de 130 anos de república, apenas uma mulher foi eleita para o cargo mais alto do executivo! A lista de exemplos é exaustiva e não quero me alongar nela. Quis apenas ilustrar como a língua atua como espelho da sociedade.
E, então, chego à questão que tem movimentado esse rio tão capilarizado: como incluir o gênero feminino, e os demais gêneros – porque não existem só dois no mundo -, em nossa língua, para que todes se sintam contemplades?
Nesses últimos anos, tenho assistido a diversas alternativas: conheço escritores (homens inclusive) que escrevem sempre no feminino, e não se sentem menores ou excluídos por causa disso – mas façam um exercício de imaginação e pensem em como nós, mulheres, e pessoas não-binárias em geral, temos nos sentido ao longo dos séculos! Há as pessoas que utilizam o X ou o @ para demarcar o gênero neutro: confesso que não vejo muita funcionalidade nesses sinais pois, além de não possuírem uma pronúncia exata, podem atrapalhar ou confundir a leitura de deficientes visuais. Se formos seguir a norma culta da língua portuguesa, como faço no ambiente de trabalho, por exemplo, utilizaremos sempre os dois gêneros padrões: prezadas e prezados, caras e caros, senhoras e senhores, o que pode tornar o texto ou discurso um pouco cansativo.
Tem-se chegado cada vez mais a um consenso, porém, em torno da letra “e” para designar todes as pessoas! Puristas dirão que “todes” não existe em português. Recomendo que retornem ao primeiro parágrafo. O convite de reabertura do Museu de Língua Portuguesa, na conta oficial da instituição no Twitter, no último 12 de julho, dizia “para todas, todos e todes os falantes, ou não, do nosso idioma”. Embora o “e” para designar o gênero neutro ainda não tinha sido formalmente incorporado à língua portuguesa, e talvez nunca venha a ser, porque as línguas são dinâmicas e se transformam por conta própria, considero o debate em torno dessa questão bastante frutífero e, sim, socialmente inclusivo.
Finalizo com um trecho do livro Feminismo em comum, do qual gosto bastante, da filósofa Márcia Tiburi, acerca do papel do feminismo nesse tipo de discussão: “O feminismo nos leva à luta por direitos de todas, todes e todos. Todas porque quem leva essa luta adiante são as mulheres. Todes porque o feminismo liberou as pessoas de se identificarem somente como mulheres ou homens e abriu espaço para outras expressões de gênero – e de sexualidade – e isso veio interferir no todo da vida. Todos porque (...) considera que aquelas pessoas definidas como homens também devem ser incluídas em um processo realmente democrático, coisa que o mundo machista (...) nunca pretendeu realmente levar à realização.”
*****
Luísa Gadelha é graduada em Letras, mestra em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba e doutoranda em Estudos Literários e Feministas pela Universidade do Porto. Servidora da UFPB, também escreve sobre literatura e é editora do site de poesia Zona da palavra. Tem poemas publicados em revistas brasileiras e portuguesas.
Comentários