SILVIO OSIAS
"Não desejo mais habitar esse espaço devotado ao Homem com agá maiúsculo"
Publicado em 09/08/2021 às 6:30 | Atualizado em 30/08/2021 às 20:45
Por várias vezes, já abri espaço aqui na coluna para que fossem discutidas questões relacionadas às lutas feministas. E o fiz pedindo a colaboração de quem tem lugar de fala.
Nesta segunda-feira (09), vamos discutir o modelo dominante de masculinidade no qual nós, homens, estamos enclausurados.
E quem vai fazê-lo é o professor Jailson Rocha, Mestre em Sociologia e Doutor em Direito.
EU: SENTADO ETERNAMENTE NO BERÇO ESPLÊNDIDO DA MASCULINIDADE
Jailson Rocha
É sobre o Homem com agá maiúsculo que quero conversar. É sobre seu poder. É sobre como ele se constituiu historicamente como uma força magnética ultrajante que nos conduz (nós, os homens com agá minúsculo) a um estado confortável e ambivalente no manejo do Poder. É sobre um tipo dominante de masculinidade que utiliza a violência como linguagem padrão de nossas sociabilidades. Que afeta corpos não binários, racializados, indígenas, de mulheres, trabalhadores e trabalhadoras. E que também afeta, de modo distinto, nós mesmos, os homens! Parto de uma indagação proposta originalmente pela antropóloga estadunidense Anna Tsing, quando reflete sobre questões ambientais: “Mas quem é esse personagem, Homem?”
Mas, antes disso, façamos um exercício mental: qual imagem vem à cabeça quando pensamos no ser humano genérico, em um sujeito universal? Quais as características desse ser humano? Muito provavelmente a ideia que veio à mente foi a de um Homem, branco, que se coloca publicamente como heterossexual, proprietário, cristão, são e “bem apresentado”, o típico “cidadão de bem” da “família brasileira”. Como bem coloca Anna Tsing em sua crítica ácida, “é difícil generalizar a partir de uma mulher mulçumana negra”.
É esse o sujeito universal do capitalismo colonial que sempre teve um privilégio histórico que precede o manejo do Poder: estar vivo! E por estar seguro e vivo é que pode manejar o Poder em proveito próprio. É esse sujeito que mata as pessoas trans, pretas, mulheres, indígenas e destrói a Amazônia.
Mas hoje não é só sobre isso que quero falar. É sobre o outro lado desta masculinidade cotidianamente alcunhada de Tóxica. É pensar como ela afeta os homens (trans, negros, lgbtqia+, indígenas, etc). Como ela me afetou enquanto homem branco.
Muito embora o poder da masculinidade nos coloque em uma posição social vantajosa (salários maiores, representação política, acesso a espaços de poder e decisão, etc), há características estereotipadas que são impostas ao homem, os mandamentos das masculinidades, que são tóxicas e ao mesmo tempo necessárias para que o homem seja considerado “homem de verdade”.
Estas características nos foram impostas desde a infância. Quem nunca ouviu as frases seguintes: “homem não chora”, “coisa de homem”, “não leve desaforo para casa”, “não seja mulherzinha”, “seja provedor”, “seja macho alpha”, “como não vai querer sexo, se você é homem?!”, “homem comedor!”?
Somos socializados para performar um ideal de masculinidade para manejar aquele Poder. Com isso, somos treinados a suprimir afetos, a não falar sobre sentimentos, medos, sensações.
O pacto narcísico e silencioso da masculinidade também traz malefícios aos homens. Nosso silêncio nos impossibilita de falar sobre saúde física e mental, sobre medos e inseguranças, sobre fragilidades e problemas, sobre afetos. A linguagem da violência substitui em nossas sociabilidades a linguagem dos afetos.
De acordo com os dados do relatório da pesquisa "O silêncio dos homens” - há também um documentário homônimo, disponível no Youtube -, “83% das mortes por homicídios e acidentes no Brasil são de homens. Vivemos 7 anos a menos que as mulheres e nos suicidamos quase 4 vezes mais. 17% de nós lida com algum nível de dependência alcoólica. Quando sofremos um abuso sexual, demoramos em média 20 anos até contar isso para alguém. Cerca de 30% enfrentam ejaculação precoce ou disfunção erétil. Homens são 95% da população prisional no Brasil, sendo que a maior parte dos encarcerados são jovens, periféricos e com ausência de figura paterna.”
Nos enclausuramos neste modelo dominante de masculinidade. O meu silenciamento me permite gozar das prerrogativas de ser homem branco de classe média em uma sociedade estruturalmente machista e ao mesmo tempo me corrói por dentro por não me permitir performar uma existência afetuosa, sensível, cuidadosa, livre.
O primeiro passo é levantar do berço esplêndido da masculinidade tóxica, reconhecendo que esse lugar social produz violência e morte que afeta a todes, todas e todos. Outros modelos não violentos de masculinidades são possíveis. Assim como a masculinidade tóxica é um produto histórico e cultural, sua desconstrução igualmente o é. Não desejo mais habitar esse espaço devotado ao Homem com agá maiúsculo, este lugar performativo não me cabe mais.
*****
Jailson Rocha é Doutor em Direito (UFBA), Mestre em Sociologia (Universidade de Coimbra), professor da UFPB. Coordenador do Observatório de Bioética e Direito Animal (OBDA/UFPB).
Comentários