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CULTURA

Apaixonado por música, João Gonçalves diz: 'Gravo para dizer que estou vivo'

Autor de clássicos como 'Severina Xique-Xique', João Gonçalves, aos 79 anos, segue compondo e gravando, mas longe dos palcos.

Publicado em 04/10/2015 às 8:01

As lembranças do passado, emolduradas na parede. Um rádio antigo no cantinho da mesa. Folhas em branco e canetas sempre a postos. É em volta desses objetos que o cantor e compositor campinense João Gonçalves, 79 anos, tem passado a maior parte dos seus dias nos últimos tempos, mantendo viva a sua paixão pela música popular, que serve de alimento para a alma e o coração.

O ‘Rei do Duplo Sentido’, ao longo dos seus 45 anos de carreira, compôs muitas canções que foram interpretadas por outras vozes e fizeram sucesso em âmbito nacional, mas ele nunca teve o merecido reconhecimento pelo trabalho que desenvolveu durante todos esses anos.

Apesar disso, João não desanima. Ele já gravou 12 LPs, 16 CDs e um DVD, acumulando um saldo de mais de mil composições, entre elas as emblemáticas ‘Severina Xique–Xique’, ‘Pescaria em Boqueirão’, ‘Mate o véio’, ‘Galeguim do zóio azu’ e ‘Locadora de mulher’, que marcaram gerações e continuam presentes no imaginário do público.

As músicas mais recentes estão reunidas no seu último CD, Cuba Vai Lançar, uma obra independente que concentra 15 faixas inéditas de autoria de Gonçalves, que as interpreta com algumas participações especiais. Lançado em junho, João conta que esse disco é uma forma de mostrar ao mundo que ele permanece ativo. “Gravo para dizer que estou vivo”, enfatiza.

Por conta da idade, os palcos foram deixados para trás e atualmente ele se dedica apenas a composição de músicas de forró que, em sua maioria, são dúbias, já que o bom humor continua sendo uma peculiaridade sua.

Durante a entrevista, o artista ri ao relembrar as histórias do passado e faz questão de cantarolar trechos das canções que ele compôs e que mais se destacaram no cenário musical, sempre cheio de orgulho.

Dentre suas composições, a gravação que João considera de maior destaque é ‘Severina Xique-Xique’ interpretada por Genival Lacerda, mas sente um carinho especial por cada uma das obras. “As músicas que eu fiz, graças a Deus, fizeram sucesso. Não foram todas, mas também nunca me decepcionei”, comenta.

A inspiração para compor, João Gonçalves revela, vem das cenas do cotidiano. Às vezes ela surge de uma conversa casual entre amigos e até mesmo de algo engraçado que ele vê na televisão ou ouve no rádio.

O interesse pela música surgiu na infância, quando costumava fazer paródias e interpretar canções, tendo uma leve influência de um avô repentista e da sua mãe, que adorava cantar. Para conseguir alçar novos voos, o artista diz que passou por algumas dificuldades devido ao baixo reconhecimento do seu talento. “Quase ninguém divulga quem compõe e só quem canta é quem aparece. Mas é isso o que eu gosto de fazer (compor)”, revela.

Há três anos, um problema de saúde fez com que João Gonçalves diminuísse o ritmo das composições, que sempre foram a sua fonte de equilíbrio financeiro e emocional.

Diagnosticado com um enfisema pulmonar, o vício do cigarro e da bebida, que ele sustentou por muitos anos, teve que ser abandonado. Agora, com quase 80 anos, ele vive em uma casa simples e aconchegante com sua esposa Maria da Glória Sousa, no bairro do Jardim Quarenta, em Campina Grande, depois de ter constituído uma família com nove filhos e 14 netos.

Embora esquecido como artista, ele carrega a certeza de que teve uma trajetória rica em sua simplicidade e muito bem vivida, apesar do anonimato. (Especial para o JP)

Onde achar 'Cuba Vai Lançar'

O CD ‘Cuba Vai Lançar’ pode ser encontrado na loja Raydiscos, no Centro de Campina Grande, por cerca de R$ 15,00. João Gonçalves prefere manter os formatos tradicionais de divulgação do seu trabalho, utilizando as rádios locais para que o público possa acompanhar sua carreira, mas alguns sucessos do compositor estão disponíveis também no YouTube.

Resistência e bom humor para driblar a Ditadura

Durante a sua vasta trajetória, o cantor e compositor João Gonçalves vivenciou momentos de tensões marcados pela intolerância, preconceito e censura em razão das suas composições de duplo sentido.
O mais difícil deles foi na época da Ditadura Militar, período em que foi proibido de cantar seus maiores sucessos. Durante o regime, ele encaminhava cerca de 30 composições para a censura na esperança de ter, ao menos, uma delas liberada para shows. Mas às vezes, nem isso conseguia.

Um caso desses ocorreu com a famosa 'Pescaria em Boqueirão', que ficou censurada por dois anos. “Eu estava em um show na Festa das Neves, em João Pessoa, e cantei essa música. No fim da minha apresentação, um rapaz pediu para que eu assinasse um papel e eu fiquei muito lisonjeado pensando que ele estava me pedindo um autógrafo. Até o cumprimentei! Mas na verdade, era uma intimação para que eu comparecesse à Delegacia da Polícia Federal”, contou, entre risos, ao recordar o episódio.

Em depoimento ao delegado, ele conta à reportagem que foi tão espontâneo que acabou fazendo amizades na polícia, mas isso não o impediu de ser perseguido em outras circunstâncias. “Depois, eu fui para Cajazeiras e o público começou a pedir ‘Pescaria em Boqueirão’ sem parar. Eu mandei dar a introdução e na hora do refrão, ficava calado, deixava que só o público cantasse. Com isso, consegui escapar de novo”, relembra João, que entre uma artimanha e outra conseguiu sobreviver à Ditadura Militar sem nenhum histórico de prisões.

Mesmo com todas essas estratégias, o artista ainda foi alvo de muitas injustiças. Seu nome já era marcado pela censura, que só de ver sua assinatura em uma canção, tornava-a proibida. Por conta disso, ele compunha e colocava o nome da esposa Maria da Glória Sousa para driblar o Regime Militar. Ele destaca que apesar das dificuldades, esse processo aguçava sua imaginação.

Com a abertura democrática, João avalia que o duplo sentido ficou adormecido e que as músicas com "pornografias explícitas" passaram a fazer muito sucesso, mas que ainda assim há espaço para uma dubiedade feita de forma criativa.

Imagem

Jornal da Paraíba

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