SILVIO OSIAS
"Tente esquecer em que ano estamos": Míriam Leitão, a cobra jiboia e o filho do presidente
Publicado em 05/04/2022 às 10:41
"Tente esquecer em que ano estamos", diz a canção Pérola Negra, de Luiz Melodia. Quando ele morreu, Míriam Leitão fez um belo texto no qual retomava esse verso. "Tente esquecer em que ano estamos". A música é do tempo em que a jornalista foi presa e torturada pela ditadura. O verso remetia àquele momento tão doloroso da vida dela.
Conheci gente que foi presa pela ditadura. Jovens, quase garotos, rapazes que ouviam música na minha casa e estudavam no Liceu. A prisão política e a tortura deixam marcas que as pessoas não superam nunca. Sei que é um clichê, mas são feridas abertas que jamais cicatrizam. Ou estão sempre prontas a sangrar de novo.
A tortura é a barbárie. A tortura não é humana. Seja a tortura política, da qual estamos falando, ou a tortura dos presos comuns, geralmente pretos e pobres, que - sabemos - perdura nas delegacias e em nosso precário sistema penitenciário, apesar da luta incessante dos grupos de direitos humanos.
A jornalista Míriam Leitão tinha 19 anos, em dezembro de 1972, quando foi presa como militante do PCdoB. Ela e seu companheiro. Grávida de Vladimir, seu primogênito, Míriam sofreu tortura física, foi ameaçada por cães e, nua, por um grupo de homens dispostos a estuprá-la. Depois, ainda nua, foi colocada numa cela escura com uma jiboia.
"Não sei quanto tempo durou essa agonia. Foram horas. Eu não tinha noção de dia ou noite na sala escurecida pelo plástico preto. E eu ali, sozinha, nua. Só eu e a cobra. Eu e o medo" - conta a jornalista em contundente, necessário e corajoso depoimento a Luiz Cláudio Cunha.
Narro um pouco dessa história por causa do que vimos nos últimos dois dias. Em reposta ao posicionamento de Míriam, que discorda dos que acham que Bolsonaro e Lula são iguais em lados opostos, o deputado Eduardo Bolsonaro foi ao Twitter e, numa mensagem em que usava um emoji, disse que ainda tem pena da cobra.
O comportamento do filho zero três do presidente é inaceitável, é indefensável. Ataca a constituição, o estado de direito, a democracia. A defesa da tortura não pode ser minimizada pelas sociedades civilizadas. Tem que ser duramente punida, embora a gente saiba que, dificilmente, o deputado Eduardo Bolsonaro sofrerá alguma punição.
Com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, o Brasil banalizou o mal. A direita mais truculenta e reacionária perdeu a vergonha e luta, agora, para reeleger o presidente. Lula atua dentro das regras do jogo democrático. Bolsonaro conspira contra a democracia. Foi mais ou menos o que Míriam disse. Não duvido que ele se reeleja.
"'Por meus filhos e netos, ainda aguardo um pedido de desculpas das Forças Armadas" - diz Míriam Leitão, talvez em vão. "Tente esquecer em que ano estamos" - volto ao verso de Melodia invocado por ela. Mudo ligeiramente a letra da canção e, referindo-me ao presente, apenas digo: tento esquecer em que ano estamos.
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