SILVIO OSIAS
Os Fabelmans é belo filme autobiográfico de Spielberg e declaração de amor ao cinema
Publicado em 17/01/2023 às 8:17
No começo de Os Fabelmans, o pai e a mãe levam o pequeno Sam ao cinema. A família vai ver O Maior Espetáculoda Terra, que Cecil B. DeMille realizou em 1952. O garoto está com medo das figuras gigantescas que aparecerão na tela grande. O pai, que é homem da ciência, tenta tranquilizá-lo com uma explicação técnica do que é o cinema e de como é possível ter as imagens em movimento. A mãe, que é pianista, também busca acalmar o menino, mas seus argumentos são outros, são sobre a magia, a fantasia do cinema. Ainda na fila, Sam se vê diante de duas visões divergentes, definidoras do cinema que faria muitos anos depois, já adulto. Os Fabelmans tem muito de uma autobiografia. Sam é, com algumas licenças, o menino/adolescente Steven Spielberg.
Penso que muitos cineastas têm na memória afetiva o seu O Maior Espetáculo da Terra. É provável que Cidadão Kane seja o de François Truffaut, se levarmos em conta que, em A Noite Americana, o diretor vivido por Truffaut tem um sonho recorrente com um garoto a roubar, da frente de um cinema, os cartazes do aclamado filme de Orson Welles. Se sairmos dos cineastas e formos para um compositor de música popular como Caetano Veloso, foi Sansão e Dalila, também de Cecil B. DeMille, que representou em sua infância o que O Maior Espetáculo da Terra representou na de Spielberg. Nós, que não somos artistas nem nada, também temos direito ao nosso filme definidor de muita coisa. O meu foi 2001: Uma Odisseia no Espaço.
Em Os Dez Mandamentos, antes do início do filme, Cecil B. DeMile (novamente ele!) dirige uma pequena mensagem ao público. Spielberg faz a mesma coisa na abertura de Os Fabelmans: dirige algumas palavras à plateia, um pequeno agradecimento aos que saíram de suas casas e foram ver o filme no cinema, que ainda é o melhor lugar para assistir a um filme. Spielberg também apresenta Os Fabelmans como o mais pessoal de todos os títulos da sua extensa filmografia, uma homenagem à sua família e uma declaração de amor ao cinema. O filme começa, então, com um duplo tributo a Cecil B. DeMille. Primeiro, pelo formato que Spielberg adotou para se comunicar com o espectador. Segundo, pela escolha de O Maior Espetáculo da Terra.
É pertinente observar que Cecil B. DeMille é muito criticado pelo "cinemão" a que se dedicou. Mas é injusto não reconhecer que DeMille desempenhou papel importantíssimo na consolidação da indústria do cinema e também na formulação de uma linguagem para os grandes épicos como Sansão e Dalila e Os Dez Mandamentos. Não faz tanto tempo assim, revi Os Dez Mandamentos, com suas quase quatro horas de projeção, e fiquei admirado diante da fluidez da sua narrativa. O tributo de Spielberg a DeMille pode ter outra explicação: o realizador de Tubarão e E.T. faz cinema há mais de meio século, conquistou um público imenso, ganhou prêmios e fez fortuna, mas ainda não é uma unanimidade, ainda não é tão respeitado como merece ser.
Os Fabelmans é uma declaração de amor ao cinema (como A Noite Americana, de François Truffaut, ou como AInvenção de Hugo Cabret, de Martin Scorsese), mas é, muito fortemente, um filme sobre a família do menino/adolescente Spielberg. Como, na vida real, Mimi, a tia de John Lennon, dizia que John jamais ganharia a vida com uma guitarra, na ficção, o pai de Sam vê como mero hobby o interesse do garoto pela realização de pequenos filmes amadores, diferente da mãe, pianista frustrada, que puxa o filho para a compreensão do sentido da arte. Muito significativa é a rápida visita que um tio da mãe faz à casa dos Fabelmans. É ele que, entre verdades e mentiras, fala ao jovem Sam sobre o quanto existe de solidão e de dor na expressão artística.
Roman Polanski, que era menino quando a mãe morreu num campo de concentração, esperou pela velhice para contar parte da sua história em O Pianista. Não seria a mesma coisa se o tivesse feito em sua juventude. Lembrei deles - o cineasta e seu relato quase autobiográfico - quando vi Os Fabelmans. Steven Spielberg já tem quase 80 anos. Ele esperou todo esse tempo para se debruçar sobre a história da sua vida e os fatos que o conduziram a ser um dos grandes cineastas do mundo. Podemos dizer que seu filme começa com Cecil B. DeMille e termina com aquele que foi (é) o maior de todos os cineastas americanos: John Ford. Não vou cometer spoiler, mas digo que faz rir e chorar a cena em que Sam se encontra com Ford, em notável caracterização de David Lynch.
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