COMUNIDADE
Lugar de Fala: no século 21 mulheres nomeiam abusos e sistemas de violência e resistência
Termos necessários para romper o silenciamento feminino. Se a linguagem é um aspecto sociocultural, ela é uma ferramenta primordial.
Publicado em 10/03/2023 às 16:13 | Atualizado em 11/03/2023 às 9:11
Lugar de Fala: no século 21 mulheres nomeiam abusos e sistemas de violência e resistência
Nem sempre falamos. Peço que releia a frase anterior e imagine quais os diversos sentidos que ela carrega. Um deles se refere à evolução da humanidade como um todo, já que aprendemos ao estudar pré-história que a linguagem em sua multiplicidade territorial que conhecemos hoje em dia nem sempre esteve aqui.
Falar na utilização de determinados códigos foi algo que o ser humano precisou fazer pela sobrevivência das espécies. O mesmo vale para a palavra escrita, que substituiu, em muitos contextos, a comunicação desenhada em formações rochosas. A gente aprende, ainda criança, que a linguagem é a herança cultural de um povo, e que ela varia a depender do território e do contexto histórico.
É com base nisso que defendo, aqui, a importância desta ferramenta sociocultural para o rompimento de um silenciamento literal e simbólico. Estamos no mês das mulheres e os diálogos sérios (que entendem o 8 de março como uma data de reivindicação por direitos concretos e amplos, e principalmente contra toda sorte de violência) usam a cada ano que passa palavras a mais para definir questões antigas.
E assim entendemos a fala como um processo de emancipação. A hierarquia social que subjuga as mulheres é milenar e atravessa culturas, na maioria delas apontar nossos sofrimentos e questionar os padrões comportamentais impostos levaram tempo para acontecer. Além do fato de que mulheres precisaram lutar muito para que algumas discussões básicas como direito ao voto e criminalização de violências pudessem avançar.
E qual o poder da palavra nisso tudo? O rompimento do silêncio é amplo. Primeiro se compreendeu os problemas, depois se iniciou o processo constante de nomeação deles, para que assim a linguagem seja uma aliada na atualização contínua das discussões em busca de mudanças sociais e políticas públicas de impacto.
Selecionei termos importantíssimos que indicam o quão importante é para os movimentos de mulheres nomear abusos, sistemas de violência e, para avançar ainda mais, estratégias de resistência.
Abusos e violações:
1 - Violência doméstica: a violação ultrapassa nosso entendimento de tempo e podemos prever que ela acontece desde, ou talvez até antes, da construção hierárquica de gênero (escala temporal sem consenso entre pesquisadores). Apesar disso, no Brasil a Lei Maria da Penha, de 2006, foi fundamental para mudar a análise social e penal da violência doméstica. Na legislação ela é definida como violações que acontecem no âmbito familiar e agem com base no gênero, causando morte, lesão, sofrimento físico, psicológico, patrimonial ou sexual.
Para que a lei fosse alcançada, Maria da Penha precisou existir e resistir. A brasileira teve seu caso repercutido internacionalmente, após sobreviver a anos de torturas ocasionadas por seu ex-companheiro e não encontrar amparo nas leis que existiam no Brasil.
Violência doméstica é, assim, um termo que surge de uma política pública conquistada para manter mulheres vivas e seguras, numa cultura que nos violenta apenas por sermos mulheres.
2 - Feminicídio: o assassinato com base no gênero também é previsto em lei, desde 2015. Mas para que o código penal pudesse incorporar esta especificidade muitas mulheres morreram silenciadas e os movimentos feministas alertaram por décadas que não se tratavam de crimes passionais. Não existe crime passional se a vítima é sempre mulher, se o motivo é sempre torpe e se o assassino costuma ser o homem que dividia um relacionamento amoroso com ela, algo que na cultura em que vivemos é visto por muitos como aval para sentimento de posse.
Apenas em 2015 conquistamos esta tipificação que amplia a pena com base na análise de que a vítima só morreu por ser mulher.
Feminicídio é uma palavra-faca, ele nos corta a alma e aniquila nossa dignidade pois, na maioria das vezes, é citado quando uma mulher já não está mais aqui. Apesar disso, é um termo extremamente necessário para que crimes assim não sejam mais normalizados.
3 - Importunação sexual: uma lei de 2018 que prevê pena para assédios que por muito tempo foram tidos como bobagem. O toque não consentido, puxão de cabelo e outras inúmeras microviolências que mulheres estão expostas, principalmente em ambientes públicos.
Para além da criminalização, nomear tais comportamentos masculinos é garantir que não serão mais tolerados ou vistos como pouco prejudiciais. Os corpos femininos nunca foram praça pública para serem trocados sem permissão.
Cabe salientar que mulheres negras e indígenas, principalmente as mais novas, são as maiores vítimas da importunação. Nossos corpos são sexualizados historicamente, desde o processo de colonização europeia. Nomear tais violações é o que pode nos fazer retomar, gradativamente, a humanidade que nos arrancaram.
Sistemas de opressão:
1 - Patriarcado: um sistema de opressão antigo o suficiente para que não haja consenso quanto ao seu início. O patriarcado é uma construção hierárquica com estratégias políticas e ideológicas de subjugar mulheres para exercer controle. São mecanismos que se atualizam, a depender da época, para impedir a liberdade dos corpos e mentes femininas. O patriarcado mantém homens em posições de poder decidindo os rumos dos países, dos continentes, das políticas internas e externas.
É um sistema complexo, combatido ferozmente por mulheres há mais de um século, sendo o principal alvo dos movimentos feministas que acreditam que sem destruir o patriarcado todos os direitos que conquistamos serão paliativos.
Para elas, nomear o sistema de opressão é uma forma de enxergar com nitidez o problema que precisa ser combatido enquanto atravessam as gerações.
2 - Misoginia: a palavra que significa ódio às mulheres é um dos principais frutos do patriarcado. O termo explica porque nossos corpos e comportamentos são tão expostos, violados, desumanizados e objetificados.
Nesta semana o Governo Federal enviou um projeto de lei que prevê a criminalização da misoginia, algo que se equipara às leis de racismo e LGBTQIA+fobia.
Estratégia de resistência coletiva:
1 - Sororidade: uma palavra para definir a importância da cooperação entre mulheres e o rompimento da competitividade feminina. O patriarcado, através do machismo reproduzido aos montes na mídia e publicidade por muito tempo, criou nas mulheres um sentimento de que para sobreviver é preciso ser superior às outras, para isso nada melhor que competir.
A sororidade é uma estratégia dos movimentos feministas para garantir que mulheres não precisam ser melhores que as outras, e que a cooperação é o melhor caminho para a resistência coletiva.
Apesar disso, sororidade não significa que todas as mulheres são perfeitas e precisam ser amigas e concordar com tudo. Significa, apenas, que não precisamos passar a vida inteira achando que prejudicar outra mulher é necessário para nosso sucesso, visto que somos todas vítimas de um mesmo sistema de opressão.
2 - Dororidade: parecida com a anterior, esta palavra é uma criativa proposição da escritora negra Vilma Piedade. De acordo com ela, se a experiência das mulheres pretas é diferente e carrega, além das dores do machismo, as do racismo, é através destas dores que elas se encontram e se acolhem.
Dororidade é o termo dado para a cooperação nutrida por mulheres negras há séculos, seja no mundo familiar ou do trabalho, e só assim muitas sobrevivem às violações.
3 - Interseccionalidade: para finalizar nossa lista, uma palavra que indica o caminho do meio. Apesar da existência de padrões de estética, comportamento e valor social, mulheres são diversas. E as experiências de cada uma depende de vários fatores para além do ser mulher.
Mulheres cis, mulheres trans, mulheres negras, indígenas, brancas, ricas e pobres. As variações passam ainda por religião, localidade geográfica e tantos outros fatores sociais que mudam completamente a experiência de ser uma mulher.
A interseccionalidade é o entendimento de que existem estes recortes e que cada grupo merece atenção na hora de buscar direitos. As políticas públicas que fazem sentido para mulheres brancas podem não alcançar negras e indígenas, e a interseccionalidade é a estratégia de luta dos movimentos feministas mais recentes para que nenhuma mulher seja silenciada para que apenas algumas sejam ouvidas.
Com tudo que vimos até aqui fica nítido que a linguagem é primordial para falarmos em liberdade feminina. Ela impulsiona discussões que alcançam leis e mudanças, e estas podem salvar inúmeras vidas e garantir direitos que, apesar de básicos, nos foram anulados por muito tempo.
Existem, ainda, diversos outros termos. Muitos em outras línguas, mas que também são fundamentais para o avanço das lutas de mulheres. Que a linguagem sempre se adapte a depender dos nossos movimentos em busca de justiça social.
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