SILVIO OSIAS
Os fantasmas dos cinemas de rua habitam meus sonhos
Publicado em 21/08/2023 às 7:15
Tenho sonhos recorrentes. Um deles é sobre os cinemas de rua da minha juventude em João Pessoa. Primeiro era o Santo Antônio, que ficava a poucos metros da casa onde morei, no bairro de Jaguaribe. Mais recentemente, o Municipal e o Plaza, no centro da cidade. Em todos esses sonhos, que me atormentam há décadas, os cinemas reabriram, mas só exibem filmes estranhos de distribuidoras sobre as quais nunca ouvi falar. Algumas pessoas que me reaparecem nas madrugadas existiram de verdade, do exibidor Luciano Wanderley ao funcionário "Bigode", que trocava os letreiros lá pelas 10 da noite, quando o Santo Antônio estava encerrando o expediente.
Os cinemas do Recife nunca entraram nesses sonhos, mas os frequentei dezenas de vezes ao longo, sobretudo, da década de 1970, época em que fui adolescente. Maio de 1974: não foi a primeira vez em que estive num deles, mas foi a primeira vez em que aquele conjunto de salas de rua (São Luiz, Trianon, Art Palácio e Moderno) em mim provocou um verdadeiro alumbramento. Era um domingo à noite, o centro estava movimentado, e eu viajara só para ver Jesus Cristo Superstar, o filme da ópera-rock que me fascinou no início da década de 1970. Havia cartazes enormes e bem iluminados no alto do edifício Trianon. Um deles, de Godspell, A Esperança.
O Romeu e Julieta de Franco Zeffirelli na tela imensa do Veneza, ali na Rua do Hospício; a estreia de O Exorcista, no São Luiz, em dezembro de 1974, eu, aos 15 anos, passando com êxito pela fiscalização do Juizado de Menores; o reencontro com A Hard Day's Night na tela diminuta da sala de arte da AIP, na Avenida Dantas Barreto; o impacto de ver Rede de Intrigas na estreia, na telona do São Luiz, numa sessão lotada de domingo à noite; a Nova Hollywood representada por Uma Mulher Descasada, que vi com Everaldo Pontes no Veneza, enquanto esperávamos pela hora do show Clube da Esquina 2, de Milton Nascimento, no Teatro do Parque.
Cinemas, cinemas. Filmes, filmes. Memória, memória. Lembranças, lembranças. Invoco essas do Recife - e não as de João Pessoa - porque é lá que se passa o novo filme de Kleber Mendonça Filho, Retratos Fantasmas, que vi em pré-estreia na última sexta-feira (18). Depois das muitas sessões em pré-estreia realizadas por todo o Brasil, o filme entra em cartaz na próxima quinta-feira, 24 de agosto, e há de ser programa obrigatório para cinéfilos e para quem admira o cinema desse pernambucano que, na última década, impressionou fortemente crítica e público com três excepcionais filmes de ficção - O Som ao Redor, Aquarius e Bacurau.
Retratos Fantasmas parece um documentário, mas não é exatamente isso. Tanto foge dos formatos clássicos do gênero quanto contém elementos de ficção. Retratos Fantasmas, através de um belo e melancólico itinerário lírico, é uma declaração de amor ao Recife, a cidade onde Kleber nasceu, cresceu, se fez crítico de cinema e, mais tarde, migrou com absoluto êxito para a realização de filmes. RetratosFantasmas é uma declaração de amor de Kleber pelo cinema, pelos cinemas que frequentou, pelos filmes que viu. São classificações óbvias, porém verdadeiras, para o novo trabalho desse cineasta que só tem acertado em suas escolhas.
Não é possível ver Retratos Fantasmas sem lembrar de grandes cineastas do mundo que filmaram suas cidades. Martin Scorsese o fez, Woody Allen também, ambos debruçados sobre Nova York. Mas penso ainda em quem fez filmes como declarações de amor ao cinema. E, aí, vou ficar apenas com o exemplo de François Truffaut (que, como Kleber, migrou da crítica para a realização) em A Noite Americana. O filme de Kleber, como o de Truffaut (ainda que tão diferentes entre si), é mais do que uma declaração de amor ao cinema. É riquíssima reflexão sobre essa forma de expressão artística que marcou tanto o século XX e está sobrevivendo ao século XXI.
Partindo do pessoal para o coletivo, Kleber Mendonça Filho conta uma história do Recife que é de muitos lugares do mundo. A decadência do centro, o deslocamento da grana e do poder para outras áreas, o fechamento dos cinemas - vimos ocorrer do mesmo modo aqui em João Pessoa. Quem frequentou as noites ainda muito pulsantes da região central da cidade há 50 anos sabe exatamente do que estou falando. Por isso, a um só tempo e em sua universalidade, Retratos Fantasmas arrancou aplausos da plateia que lotou o recifense Teatro do Parque e também daquela que viu o filme em primeiríssima mão no último Festival de Cannes.
Seu Alexandre, o projecionista do Art Palácio, é um personagem que há de comover muitos espectadores. Com uma câmera VHS, Kleber o filmou quando o cinema estava perto de fechar, uns 30 anos atrás. Universal, sua presença em Retratos Fantasmas dialogará com as plateias do mundo inteiro. Mas há, no filme, menções a pessoas que só serão identificadas por um grupo restrito de espectadores. Como o superoitista Amin Stepple, o jornalista Fernando Spencer, o guru tropicalista Jomard Muniz de Britto e o homem de teatro Antônio Cadengue. A imagem noturna de uma figura correndo sobre uma ponte no centro do Recife é de Cadengue num filme de Jomard.
Kleber Mendonça Filho é um dos grandes cineastas do mundo fazendo filmes à altura dos melhores filmes ora realizados no mundo. Não consigo enxergar de outra maneira o diretor pernambucano e seus trabalhos. Mas, para nós, que estamos tão perto dele e da cidade onde se dá a sua criação, há um sentimento que é só nosso - o de que a gente conhece os lugares que estão nos seus filmes, de que tudo aquilo nos é muito familiar. Nessa perspectiva, Kleber Mendonça Filho nos representa ainda mais fortemente. Em uma década, seu cinema se consolidou como uma magnífica expressão da arte que os brasileiros produzem para nos orgulhar diante do mundo.
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