SILVIO OSIAS
Retratos Fantasmas "de tão pessoal, parece mais uma crônica, sim, uma crônica cinematográfica"
Publicado em 30/08/2023 às 6:55 | Atualizado em 30/08/2023 às 7:18
Pedi e fui atendido. Nesta quarta-feira (30), posto texto que o crítico de cinema João Batista de Brito escreveu especialmente para a coluna sobre Retratos Fantasmas, o novo filme de Kleber Mendonça Filho.
CHAVE DE LÁGRIMAS
João Batista de Brito
Há tempos não via o Cine Banguê superlotado. E quando o Banguê lota é com gente cabeça. Pois só o cineasta Kleber Mendonça Filho pra juntar essa gente. Refiro-me à sessão vespertina, dia 26 de agosto, de Retratos fantasmas, que fui forçado a assistir ao pé da tela, eu que só sento na última fila.
Estar ali, com aqueles cinéfilos todos, me lembrou as velhas sessões nos velhos tempos do concorrido “Cinema de Arte”, anos sessenta, no Cine Municipal – projeto mantido pela saudosa ACCP, Associação de Críticos Cinematográficos da Paraíba.
Retratos fantasmas é um documentário sobre os antigos cinemas de Recife, mas não é só isso. De tão pessoal, parece mais uma crônica, sim, uma crônica cinematográfica. Narrado em voz over de primeira pessoa, está dividido em três partes, mas mesmo essa divisão, indicada por legendas, não pesa muito, no sentido em que não torna o filme esquemático.
A primeira parte seria sobre o apartamento da família do cineasta; a segunda sobre as ruínas dos cinemas antigos; a terceira sobre como esses cinemas viraram templos evangélicos, ou, retrocedendo mais no tempo, como igrejas viraram cinemas, caso curioso do Cine São Luiz, que fora no passado, uma igreja anglicana.
Dito assim, o filme parece desigual (sem relação temática entre a primeira e as outras partes), mas não é o caso. Segura-se no ar a isotopia de /prédio/ e nisso o velho apê se perfila semanticamente entre os muitos prédios dos cinemas antigos, em ruínas, ou simplesmente derrubados.
Ocorre ainda que foi no apartamento da família que Kleber rodou muitos dos seus filmes, inclusive os de maior sucesso, como O som aoredor. De forma que a história do apê passa a soar como o cenário da trajetória de um cineasta – um cineasta cinéfilo que agora nos conta, de forma igualmente pessoal, a sua tristeza de ver os cinemas de sua cidade mortos, agora expostos em “retratos” que são “fantasmas”.
Notar que o tema da fantasmagoria já aparece na primeira parte, quando o cineasta relata sobre uma certa fotografia batida no apartamento, que teria registrado a figura de uma alma do outro mundo. E é esse clima de fantasmagoria que, no final da terceira parte, e portanto, no desenlace, vai justificar a brincadeira de fazer “desaparecer” o motorista de aplicativo.
Em outras palavras, em que pese a sua qualidade documental, o filme é, como uma crônica, autobiográfico de ponta a ponta.
Sobre esse tom subjetivo, emotivo, lírico, vejam, na parte mediana, a relação do cineasta com o operador de câmera do antigo Cine Art-Palácio, Seu Alexandre, tudo filmado, tempos antes, pelo próprio cineasta em precário Super 8 – modelo de câmera também morto, como aliás, Seu Alexandre. Um dos momentos mais tocantes é quando Seu Alexandre, na derradeira sessão do cinema onde trabalha, confessa que aquela exibição vai fechar a existência da sala, não com chave de ouro, mas com “chave de lágrimas”.
Como não se comover? Pouco importa se você nunca frequentou os cinemas de Recife. Em seu tom de crônica, insisto, o filme de Kleber Mendonça nos remete a todas as histórias de cinemas de rua do país. E possivelmente, do mundo.
Eu, pessoalmente, me vi nas calçadas dos cinemas de rua de João Pessoa, comprando ingresso pra ver A princesa e o plebeu, ou Matar ou morrer, ou Depois do vendaval. Especialmente, me vi nas cadeiras dos cinemas do meu bairro: Cine Antônio, Cine São José e Cine Jaguaribe, fantasmas que me perseguem e com os quais tenho sonhos, ou pesadelos, recorrentes. (O mesmo fato confessa o jornalista Sílvio Osias em seu emocionado texto sobre o filme).
Desconfio, porém, que o filme de Kleber Mendonça possa ter uma limitação de ordem recepcional: embora o seu autor não seja propriamente idoso, trata-se de um filme que vai talvez cativar um pouco menos a juventude das frias salas de shoppings de hoje, e muito mais os cinéfilos de antanho, gente como eu, que sabe muito bem o que Seu Alexandre quis dizer com a expressão “fechar com chave de lágrimas”.
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