VIDA URBANA
Memória viva da 2ª Guerra Mundial em João Pessoa
Capital paraibana ainda abriga 40 ex-combatentes do Exército Brasileiro que lutaram durante a década de 1940 e têm muita história para contar.
Publicado em 14/12/2014 às 8:00
Quase 70 anos após o término da 2ª Guerra Mundial, João Pessoa ainda abriga ex-combatentes do Exército Brasileiro que representaram o país nas batalhas. Segundo a responsável pelo funcionamento da Associação dos Ex-Combatentes do Brasil na capital, Gertrudes Ferreira Tavares, há cerca de 40 veteranos, com idades entre 90 e 94 anos, vivendo na cidade. Alguns deles continuam, inclusive, participando de reuniões e eventos organizados pelos militares em homenagens aos sobreviventes dos conflitos.
Um exemplo é Milton Nogueira, que conta, orgulhoso, sua história de lutas e aventuras. Aos 94 anos e com a memória ainda vívida, ele afirma que sua trajetória começou em Belém (PA) quando, no dia 17 de junho de 1939, foi chamado para o serviço militar e se apresentou no 26º Batalhão de Caçadores.
Na época, por interessar-se pelo atletismo, tornou-se destaque entre os colegas ao correr em maratonas e vencer disputas. Contudo, uma decisão do então presidente Getúlio Vargas mudou totalmente a vida do jovem.
“Quando a guerra foi declarada, Vargas convocou 200 mil brasileiros, de todos os batalhões do país, que começaram a fazer os exames de saúde para saber se poderiam ir. Isso foi em 1942. Eu já morava no Maranhão e fui logo aprovado. Ia completar 23 anos na época", lembrou.
"Tempos depois, em dezembro de 1943, houve a ordem de embarcar para o Rio de Janeiro. Cheguei lá em janeiro de 1944 e nunca tinha enfrentado aquele frio. Fomos, em seguida, para a vila militar e para o campo de Gericinó ter instruções”, acrescentou.
O cenário era de apreensão. O Brasil, inicialmente, mantinha uma posição neutra nos embates, porém após ataques de forças nazistas alemãs a cinco navios mercantes do país, Vargas entrou em acordo com o presidente americano Franklin Delano Roosevelt e declarou guerra contra Alemanha e Itália. Com isso, o Exército precisou se mobilizar e os militares tiveram que se preparar para serem enviados ao território italiano.
“Foram formados escalões de 1942 a 1945. Eu fui no último e embarquei em fevereiro para a Itália. A viagem pelo mar durou 13 dias. Do Rio de Janeiro até Gibratar, o navio era comboiado pela Marinha de Guerra do Brasil; de Gibraltar até lá, os americanos é que tomavam conta", explicou Nogueira.
"Quando chegamos a Napóles, estava zero grau e fomos todos conduzidos para o quartel general das Forças Armadas do Brasil, na cidade de Pisa. Eu não entrei em combate, apenas fazia parte da equipe de transmissão e até chefiava essa parte. Carregávamos um aparelho para comunicação e reconhecíamos o terreno, avisando se poderiam avançar ou não”, continuou.
Muito sangue, suor e sofrimento. Segundo ele, a parte mais difícil da experiência foi ver os companheiros morrendo. “Como era tudo minado, você precisava ter muito cuidado, porque a mina aguentava até dez quilos. Se passasse disso, ela estourava. De vez em quando, a gente via alguém explodindo, com uma perna para um lado, cabeça para o outro”, disse o veterano, que ainda revelou a forma como as mortes eram conduzidas.
“Cada um levava um colar com duas placas. Nelas, havia o nome, o batalhão e a classificação de sangue. Quando morria algum desses companheiros, uma dessas plaquetas era colocada entre os dentes da pessoa morta até que o órgão competente viesse apanhar o corpo. A outra, levávamos para registrar o falecimento”, ressaltou, acrescentando que permaneceu na Itália até outubro de 1945.
Ex-combatente exibe medalhas e condecorações que ganhou pela participação na guerra (Foto: Rizemberg Felipe)
Fim dos conflitos
Conforme Nogueira, com o fim dos conflitos, os grupos precisaram voltar ao Brasil e pensar em novas formas de sobrevivência, uma vez que a maioria dos combatentes havia sido dispensada. Ele, que estava no Rio de Janeiro, sem emprego, família e moradia, decidiu que era o momento de estudar e prestar um concurso para tentar ser escrivão de polícia.
“Consegui passar e fiquei trabalhando até 1977, quando me aposentei. Hoje sou um ex-combatente e aposentado público. Começamos a receber o benefício do Exército em 1987, quando já estava se aproximando a Carta Magna de 88. Foi nesse momento que fomos reconhecidos e começamos a ter direitos”, frisou.
Em relação à vinda para a capital paraibana, o veterano explicou que a ideia surgiu após o falecimento da primeira esposa. Morando em Teresópolis (RJ) e sem a companheira que esteve ao seu lado por 58 anos, ele entrou em contato com uma prima e resolveu viajar para João Pessoa, onde conheceu a atual esposa, Tânia Maria.
“Desde então, todos os anos eu participo das atividades do Exército. Sempre recebo convites e dona Gertrudes, prestadora de serviço para os ex-combatentes, é que ajuda a manter esse contato entre os companheiros”, finalizou.
Secretária da associação enfrentou machismo
“Eu só vou desistir quando morrer o último. Não penso em abandonar isso nunca”. É dessa maneira que Gertrudes Ferreira Tavares defende as iniciativas que desenvolve na Associação dos Ex-Combatentes do Brasil, espaço onde também mora, localizado no Varadouro. De acordo com ela, que tem 67 anos e trabalha com os veteranos de guerra há mais de nove, as dificuldades em continuar com os projetos envolvendo os idosos são muitas, mas vale a pena por elevar a imagem de quem lutou pelo país.
“O que me deixa mais feliz é quando estou no dia 7 de Setembro, desfilando com eles e mostrando para o público os heróis que são. Eles são grandes homens, que levaram a pátria e levantaram a bandeira brasileira. Não podemos deixar que isso acabe, eles são nosso orgulho”, mencionou Gertrudes, que diz ter trilhado um longo caminho até conseguir se estabilizar como funcionária da associação.
“Eu sou do Paraná, da cidade de Campo Mourão. Casei aos 13 anos e fui morar e Campina Grande. Depois, vim para João Pessoa, fiquei viúva e conheci um novo companheiro. Ele atuava na associação, mas acabou morrendo também. Fiquei sem chão, desempregada e passando necessidade. Foi quando decidi continuar o trabalho dele. Naquela época, não davam muita bola para mim e o machismo era grande”, contou.
Gertrudes Ferreira Tavares conduz sozinha o trabalho da Associação dos Ex-combatentes do Brasil na Paraíba (Foto: Rizemberg Felipe)
Posteriormente, mostrando boa vontade e desejo de contribuir incisivamente para a história do Exército, ela foi conquistando admiradores e amigos. Tanto que frequentemente viaja para se encontrar militares de outros Estados e celebrar ex-combatentes que ainda não conhece.
“Outro dia, a Base Aérea do Recife mandou um avião me buscar. Fui, participei do evento e, quando cheguei em casa, fiquei no terraço pensando no que havia acontecido. Fiquei me perguntando ‘será que sou eu mesma?’. Minha pressão foi lá para cima, tanto que tive que ir para o hospital. O médico perguntou se eu havia passado por algum estresse e eu disse: não, foi felicidade, uma felicidade muito grande”, concluiu, já fazendo planos para o próximo ano.
“Quero continuar como voluntária e vender minhas camisetas. Vou batalhar também, com unhas e dentes, para colocar a estátua de um pracinha que morreu na Lagoa (do Parque Sólon de Lucena). Quero mostrar o valor que ele teve. Além do mais, aqui é a capital, precisa de um monumento desses. Por que não prestar essa homenagem?”
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