SILVIO OSIAS
Mônica Salmaso faz a gente ter fé no Brasil
A cantora paulistana trouxe o show Minha Casa no sábado (09) a João Pessoa.
Publicado em 11/08/2025 às 7:02

Morro Velho conta a história da amizade e das brincadeiras de dois meninos. Um é branco, o outro é preto. Um é filho do dono da fazenda, o outro é filho dos empregados.
Mais tarde, o branco vai estudar na cidade grande. Quando volta, adulto, traz sinhá mocinha - "linda como a luz da lua" - para apresentar e está pronto para viver o seu destino, que é comandar o destino da fazenda.
Seu velho amigo de infância, o menino preto, não é mais uma criança. Agora, ele já não brinca mais. Como seus pais fizeram um dia, agora ele trabalha na fazenda.
Morro Velho foi gravada por Milton Nascimento em seu disco de estreia, de 1967. Elis Regina regravou a canção uma década mais tarde, em seu álbum de 1977.
Morro Velho é o retrato de um Brasil que não deixa de ter a casa grande e a senzala. Era em 1967, permanece em 2025, porque fala sobre nossas insanáveis desigualdades.
Para mim, Morro Velho foi o momento mais bonito e mais forte de Minha Casa, o show que Mônica Salmaso apresentou sábado (09) no palco do Intermares Hall.
Não é fácil fazer uma canção que a gente ouviu com Milton Nascimento, autor da melodia e da letra, e, mais tarde, passou a ouvir com Elis Regina. Mônica Salmaso faz, dando uma outra grandeza a essa música que já nasceu grande e assim atravessa o tempo.
O que fazer depois de cantar Milton Nascimento? - Mônica pergunta, e ela própria responde com uma joia rara: Santa Voz, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro.
Minha Casa começa com Saudações, de Egberto Gismonti e novamente Paulo César Pinheiro. É um samba do final da década de 1970. No original, bem joãogilbertiano.
Em Minha Casa, Saudações é a abertura perfeita. "Ver os amigos/Abraçá-los e chorar de emoção" - é Mônica chamando a gente para o reencontro, para entrar na casa dela.
Minha Casa é Mônica Salmaso depois da pandemia. O embrião talvez seja o Ô de Casas, a série de vídeos que ela dividiu com dezenas de artistas durante o isolamento.
Minha Casa é Mônica Salmaso do jeito que Mônica Salmaso é. Uma das maiores cantoras do Brasil num show impecável, irrepreensivelmente belo e perfeito.
Que voz! Que banda! Que show! Que noite! Acho que não é a primeira vez que digo isso. Pois digo novamente agora, depois de ver Mônica Salmaso em Minha Casa.
Mônica Salmaso é uma figura esfuziante no palco. Cantando, rodopiando, falando, interagindo com os seis músicos da banda. Compartilhando alegrias e tristezas.
Para mim, houve uma sequência "matadora" no setlist de Minha Casa. Três números nos quais Mônica ostenta toda a sua dimensão: Assentamento, de Chico Buarque, Morro Velho, de Milton Nascimento, e Santa Voz, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro.
Mas tudo é só beleza no show de Mônica Salmaso. Músicas que se tornaram clássicos do cancioneiro popular do Brasil, como Valsinha, de Chico Buarque e Vinícius de Moraes.
Outras que são mais conhecidas de quem acompanha de perto essa carreira iniciada quando, nos anos 1990, Mônica regravou os Afro-Sambas, de Baden e Vinícius.
A Violeira é uma preciosidade da parceria de Tom Jobim com Chico Buarque. Está na trilha do filme Para Viver um Grande Amor. Mônica lembra e recomenda o disco.
O original é com Elba Ramalho. Também está no CD em que o MPB4 e o Quarteto em Cy se debruçam sobre a parceria de Tom Jobim e Chico Buarque, esses nossos gigantes.
Xote é um Gilberto Gil tão pouco lembrado. Parceria com Rodolfo Stroeter. Uma das faixas de Sol de Oslo, disco extraordinário, que traz as vozes de Gil e Marlui Miranda.
Paulistana Sabiá é de Guinga para Mônica Salmaso. Guinga deu de presente para ela no tempo da pandemia. Primeiro veio a melodia, e Mônica chorou tanto que "inundou" a sala da sua casa. Quando vieram letra e música, Mônica "inundou" a cidade de São Paulo.
Aparição de Gonzaga, de Ian Faquini e Guinga, é outra coisa linda. Toca fundo nos nossos corações de nordestinos. Já Canto Sedutor, de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, o Brasil inteiro ouviu no remake da novela Renascer. É quando Mônica fala do paraibano Walter Carvalho, mestre absoluto da fotografia no cinema e na televisão.
Acalanto é Teresa Cristina, essa princesa do samba do Rio de Janeiro. Moro na Roça evoca Clementina de Jesus, essa força da natureza que, por cinco noites, eu vi ao vivo nos anos 1970 e, ao abraçá-la no camarim, caí no choro com a cabeça sobre o ombro dela.
Gírias do Norte, de Onildo Almeida e Jacinto Silva, é um coco nordestino. Quem gosta de cantar é Xangai. Mônica Salmaso adora cantar coco, e como sabe fazê-lo!
Menina Amanhã de Manhã, uma parceria de Tom Zé com Perna (Antônio Perna, médico, o pianista da banda Expresso 2222, de Gilberto Gil), é o número que fecha o bis, prometendo algo que é só um sonho: "Menina, amanhã de manhã/quando a gente acordar/quero te dizer/que a felicidade vai/desabar sobre os homens".
Mônica Salmaso é uma artista que faz a gente ter fé no Brasil. Acho que já disse isso outra vez. Se disse, digo de novo após ver Minha Casa. O Brasil está difícil, e não é fácil ter otimismo. Mônica Salmaso, com sua arte, enche o coração da gente de luz e crença.
*****
O repertório de Minha Casa:
01/SAUDAÇÕES (Egberto Gismonti/Paulo César Pinheiro)
02/VOU NA VIDA (Swami Jr. /Virgínia Rosa)
03/NOITE SEVERINA (Lula Queiroga /Pedro Luis)
04/APARIÇÃO DE GONZAGA (Ian Faquini /Guinga)
05/A VIOLEIRA (Tom Jobim /Chico Buarque)
06/QUEBRA MAR (Dori Caymmi /Paulo César Pinheiro)
07/ACALANTO (Teresa Cristina)
08/TELECO-TECO (Marino Pinto /Murillo Caldas)
09/VALSINHA (Chico Buarque /Vinícius de Moraes)
10/VIOLADA (Guinga /Paulo César Pinheiro)
11/PAULISTANA SABIÁ (Guinga)
12/MORO NA ROÇA (D.P. Adap. Xangô da Mangueira e Zagaia)
13/ASSENTAMENTO (Chico Buarque)
14/MORRO VELHO (Milton Nascimento)
15/SANTA VOZ (Baden Powell /Paulo César Pinheiro)
16/O TEMPO NUNCA MAIS FIRMOU (Chico Chico /Sal Pessoa)
17/XOTE (Gilberto Gil /Rodolfo Stroeter)
18/MORTAL LOUCURA (Gregório de Matos musicado por José Miguel Wisnik)
19/TÁ? (Pedro Luis /Roberta Sá/ Carlos Rennó)
20/GÍRIAS DO NORTE (Onildo Almeida /Jacinto Silva)
Bis
21/CANTO SEDUTOR (Dori Caymmi /Paulo César Pinheiro)
22/MENINA AMANHÃ DE MANHÃ (Tom Zé /Perna)
A banda de Minha Casa:
Tiago Costa – piano
Neymar Dias – viola caipira e contrabaixo
Lulinha Alencar – acordeon
Teco Cardoso – sax e flautas
Ricardo Mosca – bateria
Ari Colares - percussão
Comentários