SILVIO OSIAS
E lá se vai o menino do Clube da Esquina
O compositor Lô Borges morreu neste domingo, dois de novembro de 2025.
Publicado em 04/11/2025 às 7:11 | Atualizado em 04/11/2025 às 10:07

O ano, provavelmente, era 1963. A cidade, Belo Horizonte. Milton Nascimento e seu amigo Márcio Borges foram ao cinema ver Jules e Jim, de François Truffaut.
Milton mal passara dos 20 anos. Márcio ainda não tinha 18. Os dois ficaram totalmente alucinados com o filme. Passaram o dia no cinema. Viram todas as sessões.
Milton já era músico, mas não compunha. Márcio não era letrista de música popular. Após o filme, os dois se trancaram num quarto, na casa dos Borges, e começaram a compor.
Uns dois anos mais tarde, Milton levou dois garotos ao cinema. Um se chamava Salomão Borges Filho e era irmão de Márcio. O outro era Alberto de Castro Guedes.
Foram ver A Hard Day's Night, o primeiro filme dos Beatles, que, no Brasil, foi chamado de Os Reis do Iê-Iê-Iê. Seria uma experiência definidora na vida deles.
Salomão Borges Filho ficaria conhecido como Lô Borges. Alberto de Castro Guedes, como Beto Guedes. Ao lado de Milton Nascimento, fundadores do Clube da Esquina.
Lô Borges morreu na noite deste domingo, dois de novembro de 2025. Tinha 73 anos e estava hospitalizado em estado grave com uma intoxicação medicamentosa.
Em 1970, Milton Nascimento lançou um disco com o Som Imaginário. A primeira faixa, Para Lennon e McCartney, era parceria de Lô e Márcio Borges com Fernando Brant.
No meio do disco, há uma canção chamada Clube da Esquina. Foi composta por Milton Nascimento em parceria com os irmãos Lô e Márcio Borges.
Clube da Esquina tem esses versos: "Perto da noite estou/O rumo encontro nas pedras/Encontro de vez, um grande país eu espero/Espero do fundo da noite chegar".
Diziam muito. O grande país com que a gente sonhava, saído do fundo da noite. A noite era, obviamente, a ditadura militar que se abatia sobre nós desde abril de 1964.

Clube da Esquina virou nome de disco em 1972. Um álbum duplo de Milton Nascimento e Lô Borges. Milton estava com 30 anos. Lô tinha somente 20 anos.
A Odeon não queria fazer o disco. Um álbum duplo? E com esse desconhecido chamado Lô Borges? Milton ameaçou mudar de gravadora, e o disco foi, por fim, viabilizado.
Clube da Esquina, o disco, entrou para a história da música popular brasileira. Hoje, é citado como um dos discos mais importantes entre todos já feitos no Brasil.
E Clube da Esquina se transformou no nome desse grupo de músicos - compositores, cantores, instrumentistas - formado em torno da figura de Milton Nascimento.
Teve a Bossa Nova, de João, Tom e Vinícius. Teve a Jovem Guarda, de Roberto e Erasmo. Teve o Tropicalismo, de Caetano e Gil. E o Clube da Esquina, de Bituca e amigos.
Ainda em 1972, Lô Borges gravou um disco solo. É conhecido como o disco do tênis, porque tem um tênis velho na capa. É muito bom, mas não fez sucesso.
No álbum Clube da Esquina, há uma música chamada Clube da Esquina 2. Mas, diferente da canção de 1970, ela foi originalmente gravada sem letra, só solfejada.
Seis anos depois, Milton Nascimento, já completamente consagrado, voltou ao formato de disco duplo e gravou Clube da Esquina 2, seu último álbum na Odeon.
Entre o disco do tênis e A Via Láctea, há um intervalo de sete anos na discografia de Lô Borges. A Via Láctea, que considero seu melhor álbum, foi lançado em 1979.
Em A Via Láctea, Clube da Esquina 2 aparece com letra de Márcio Borges: "Porque se chamavam homens/Também se chamavam sonhos/E sonhos não envelhecem".
Tem ainda Vento de Maio ("Chegou de repente o fim da viagem/Agora já não dá mais pra voltar atrás"), que a gente ouviu muito na voz de Elis Regina.
O Clube da Esquina reuniu grande nomes da música brasileira, mas não custa reconhecer que todos foram eclipsados pela figura gigantesca demais de Milton Nascimento.
Lô Borges - como Beto Guedes - era o lado beatle do Clube da Esquina. Compôs belas canções, mas correu por fora, ficou meio à margem, careceu de maior reconhecimento.
Está sendo muito reverenciado na hora da morte. As canções voltam, e as pessoas constatam que elas são muito bonitas, que elas nos marcaram fortemente.
Tudo Que Você Podia Ser, Nuvem Cigana, Um Girassol da Cor do Seu Cabelo, Paisagem da Janela, Feira Moderna - é tudo Lô Borges. Lô e seus parceiros.
Dois Rios, muitos anos na frente, também é Lô Borges. Melodia dele com Samuel Rosa, letra de Nando Reis. Grande sucesso do Skank com cara de balada beatle.
Dois Rios é de 2003. Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor é um ano antes. Parceria de Lô e Márcio. Milton Nascimento gravou a versão definitiva no seu álbum Pietá.
O Trem Azul, talvez a canção mais famosa de Lô, tem letra de Ronaldo Bastos. Foi gravada por Elis Regina e, vertida para o inglês por Tom Jobim, virou The Blue Train.
"Você pega o trem azul o sol na cabeça". Ou, na versão de Tom: "You take the blue train/The sun on your head". O Maestro Soberano reverenciando o Clube da Esquina.
Lô Borges puxava seu trem azul pelos caminhos das Minas Gerais e da música popular brasileira. Para mim, nunca deixou de ser o menino do Clube da Esquina. Lá se vai...

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