SAÚDE ALERTA
Ciência, espiritualidade e saúde
Quando não é preciso escolher entre uma e outra
Publicado em 31/12/2025 às 14:37

QUANDO A CIÊNCIA PARECE NÃO DAR CONTA DE TUDO
Durante todo o ano, falamos muito sobre evidência científica.
Estudos, números, diretrizes, prevenção, risco, tratamento.
E, em meio a tanta ciência, pode ter ficado a impressão de que existe um abismo entre espiritualidade e medicina moderna.
Como se falar de fé, sentido de vida, propósito ou espiritualidade fosse algo incompatível com a ciência.
Mas isso não é verdade.
E não é apenas uma reflexão pessoal. São as próprias sociedades científicas que hoje reconhecem essa integração.
O QUE A MEDICINA JÁ RECONHECE
Hoje já está bem documentado que fatores como estresse crônico, solidão, sofrimento emocional prolongado, falta de sentido de vida e ausência de vínculos sociais impactam diretamente a saúde — especialmente a saúde do coração.
Esses fatores influenciam pressão arterial, inflamação, qualidade do sono, hábitos de vida, sedentarismo e até a adesão ao tratamento.
Espiritualidade, do ponto de vista científico, não significa necessariamente religião.
Ela envolve valores, propósito, esperança, pertencimento e a forma como cada pessoa lida com perdas, dor e incertezas.
QUANDO A VIDA REAL ENSINA MAIS QUE OS LIVROS
Sou católico. Frequento a igreja, vou à missa e tenho Deus como sentido da minha vida.
Ao mesmo tempo, sou médico e cientista, formado na lógica da evidência, da biologia e da fisiologia.
À primeira vista, isso poderia parecer uma grande dualidade.
Hoje entendo exatamente o contrário: essas dimensões se complementam.
Houve um período da minha vida em que me afastei da igreja.
E não foi pouco.
Eu, que antes ia à missa todos os dias, passei a não conseguir ir nem aos domingos.
Isso me causava sofrimento. Culpa. Uma sensação constante de falha.
Eu me preparava para ir à missa, mas quando chegava o domingo, não tinha ânimo, não tinha coragem, não tinha vontade.
E então vinha a culpa.
E, com ela, um cansaço ainda maior.
Era um ciclo.
Quanto pior eu me sentia, menos conseguia ir.
E quanto menos eu ia, pior eu me sentia.
QUANDO ENTENDI QUE ERA O CORPO QUE PRECISAVA DE CUIDADO
Ao procurar ajuda profissional, entendi algo fundamental: eu estava doente do corpo.
Precisava tratar o corpo.
Precisava de cuidado médico.
Precisava olhar para o que era biológico, orgânico, físico.
A espiritualidade poderia ajudar, sim.
Mas ela não substituía o tratamento.
Quando o corpo começou a melhorar, algo muito bonito aconteceu:
a vontade de frequentar a igreja voltou naturalmente.
Sem culpa.
Sem cobrança.
Sem peso.
Ali compreendi, na prática, algo que hoje também é respaldado pela ciência.
NEM TUDO É ESPIRITUAL — E ISSO NÃO É FALTA DE FÉ
Nem toda dor é espiritual.
Nem todo sofrimento é falta de fé.
Nem toda ausência de ânimo é fraqueza religiosa.
Muitas vezes, é doença.
É exaustão.
É alteração biológica.
É algo que precisa de cuidado profissional.
Espiritualizar tudo não ajuda — prejudica.
Mas excluir completamente a espiritualidade também empobrece o cuidado.
O equilíbrio está na integração.
A espiritualidade precisa ser uma mola propulsora, não um lugar de cobrança constante.
Quando a fé vira apenas culpa, pecado e sofrimento, ela deixa de curar.
Deus não é só exigência.
Deus é amor, cuidado e misericórdia.
O QUE DIZEM AS SOCIEDADES CIENTÍFICAS
Esse entendimento não é isolado.
A Sociedade Brasileira de Cardiologia, por exemplo, já publicou documentos e editoriais mostrando que fatores psicossociais e espirituais influenciam o risco cardiovascular, a adesão ao tratamento e os desfechos em saúde.
A ciência não afirma que espiritualidade cura doenças.
Ela afirma algo mais responsável: ela influencia o caminho da saúde e da doença.
SAIBA MAIS
A Sociedade Brasileira de Cardiologia publicou editorial no periódico Arquivos Brasileiros de Cardiologia destacando a importância da sensibilidade cultural e da espiritualidade no cuidado cardiovascular, sempre como complemento — e não substituição — do tratamento médico.
🔗 Espiritualidade e Doença Cardiovascular – Valorizando a Sensibilidade Cultural na Cardiologia
Outro documento oficial da entidade aborda a relação entre espiritualidade, estresse e hipertensão arterial:
🔗 Position Statement on Hypertension and Spirituality
MENSAGEM DE ANO NOVO 2026
Que 2026 nos ensine a cuidar melhor de nós mesmos.
Do corpo, com ciência, responsabilidade e acesso ao cuidado adequado.
Da mente, com atenção, escuta e respeito aos limites.
E da espiritualidade, não como lugar de culpa ou cobrança, mas como fonte de sentido, acolhimento e esperança.
Que a fé, para quem a tem, seja apoio — nunca peso.
E que a ciência continue sendo aliada, nunca inimiga.
Que a saúde seja construída no equilíbrio.
Na integração entre corpo, mente e espiritualidade.
Com menos culpa, mais cuidado e mais sentido.
André Telis é médico, cirurgião cardíaco, doutor pela Unifesp e professor de Medicina da UFPB, com atuação em assistência, ensino e divulgação científica em saúde.

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