CULTURA
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Cinesta paulistano Eduardo Coutinho morreu aos 80 anos assassinado pelo filho; crime aconteceu no apartamento da família.
Publicado em 04/02/2014 às 6:00 | Atualizado em 20/06/2023 às 11:59
“O cinema está de luto”, afirma transtornado o documentarista paraibano Vladimir Carvalho, que soube da morte de Eduardo Coutinho através do seu irmão, Walter Carvalho. “Até agora eu não assimilei essa estapafúrdia morte. É pra lá de uma tragédia grega”.
Na manhã do último domingo, aos 80 anos, o cineasta paulistano foi assassinado a facadas na sua casa na Lagoa, zona sul do Rio de Janeiro. O enterro aconteceu às 16h, no Cemitério São João Batista, em Botafogo.
A aproximação de uma tragédia grega é devido ao principal suspeito do crime apontado pela polícia: Daniel Coutinho, de 42 anos, filho do documentarista, que foi indiciado por homicídio e tentativa de homicídio, já que as autoridades investigam se ele atacou o pai e a mãe, Maria das Dores Oliveira Coutinho, de 62 anos, durante um surto psicótico. Atingida por cinco facadas, ela foi operada e o seu estado de saúde inspira cuidados. Sob custódia policial, Daniel se encontra internado no hospital municipal devido a duas facadas no abdômen.
Coutinho foi um divisor de águas do documentário. Uma de suas marcas no gênero é “a maestria ao lidar com o entrevistado”, como aponta o cineasta paraibano Torquato Joel. “Ninguém consegue fazer com que o entrevistado se ‘desarme’ diante da câmera como ele”.
“Ele era uma criatura humana que tinha a mansidão como sua principal característica”, frisa Vladimir Carvalho, que foi o assistente de direção nos anos 1960 da obra mais visceral do realizador: Cabra Marcado para Morrer. “Ele respeitava o entrevistado até a última gota. É um artista genial – para se usar uma palavra já gasta. A figura humana mais extraordinária que já conheci”.
Para o documentarista paraibano Bertrand Lira, Coutinho exercia a prática de oferecer a voz ao outro, influenciado pelo "cinema verdade" de Jean Rouch (1917-2004). “Depois da ditadura do discurso do documentário clássico, ele fazia um documentário de diálogo e escuta. Um encontro entre o realizador e o sujeito”.
Mas o paulistano extrapolou o cinema direto, reinventando o gênero. Seu cinema era mais cru e barroco, um trabalho que, possivelmente, chamaria a atenção de nomes como Glauber Rocha (1939-1981), o cineasta que "santificou" Linduarte Noronha (1930-2012) por Aruanda e teria canonizado também Eduardo Coutinho se tivesse testemunhado as suas obras documentais.
“Para Coutinho, a voz do outro era mais importante. Ele foi além do Rouch”, resume Bertrand. “Seu documentário era mais criativo, inventivo e enxuto”.
Tanto Vladimir Carvalho quanto Bertrand Lira destacam a ética do cineasta, que se encontrava acima de seus projetos. “Ele tinha um cuidado muito grande com a ética, muito mais do que a estética”, aponta Bertrand. “Eduardo Coutinho enxergava o que era importante para o personagem, e não para o filme”.
O que interessava para o documentarista eram as pessoas – sejam celebridades ou anônimas. Não importa se era registrado sua equipe, ou surgia no enquadramento o boom do microfone, o mais importante era ele ouvir as histórias que residem em cada um. “Ele deixou a sua marca para sempre”, sentencia o amigo Vladimir.
UMA OBRA MARCADA PARA VIVER
Eduardo Coutinho era um documentarista que se vestia com as histórias das pessoas, que se desnudavam na frente da sua câmera.
Seu mais importante trabalho é Cabra Marcado para Morrer (1984), obra que nasceu na Paraíba. Inicialmente o projeto era uma ficção sobre o líder sindical das ligas camponesas paraibanas João Pedro Teixeira, assassinado em 1962, mas teve que ser abandonado devido à perseguição militar às portas do golpe de 1964 e retomado 17 anos depois, como documentário, onde o próprio Coutinho investigava o paradeiro dos atores e da viúva Elizabeth Teixeira.
Cabra Marcado... é um clássico que sintetiza toda uma época, do início da ditadura até a abertura política.
Semana passada, o realizador estava em estúdio, cuidando dos comentários em áudio do documentário, que este ano completa o cinquentenário que começou a ser produzido e seus 30 anos quando foi lançado.
Em virtude dos extras do DVD comemorativo que será lançado ainda este ano, Coutinho retornou à Paraíba no início de 2013 para gravar com Elizabeth e outros personagens do filme.
Acompanhado do cineasta Bertrand Lira, a reportagem do JORNAL DA PARAÍBA foi entrevistá-lo na varanda do hotel onde estava hospedado com sua equipe, na orla do Cabo Branco, em João Pessoa.
“Ele estava falante e bem-humorado”, relembra Bertrand.
“Inclusive contou que, quando foi entrevistar o senhor que fazia o João Pedro Teixeira na ficção, ele falou que Coutinho estava ‘tão acabadinho’”.
O motivo da entrevista ser na varanda era para o realizador fumar um cigarro atrás do outro. Ele chegou a brincar várias vezes, declarando que não assistia mais filmes, apenas fumava e que queria fazer um bunker na praia, devido a constante brisa que atrapalhava suas tragadas.
Como um personagem de seus documentários, "despi" do papel de jornalista e declarei que tive dois grandes momentos na minha vida dedicada ao cinema: ter sido aluno de Linduarte Noronha e conhecer o autor de Cabra Marcado... Na hora da despedida, pedi as suas bençãos, que ele não me concebeu pela mais pura humildade.
HERANÇA DE COUTINHO
Como uma herança inestimável, Eduardo Coutinho deixa uma filmografia de mais de 20 produções, sendo 12 longa-metragens, a maioria documentários.
Em 2007, pelo conjunto da sua obra, o cineasta foi premiado com o Kikito de Cristal no Festival de Cinema de Gramado (RS). No ano passado, ele e José Padilha (Tropa de Elite, Ônibus 174) foram os mais novos realizadores brasileiros a entrar para a seleta Academia de Hollywood.
Cabra Marcado para Morrer, a obra mais importante da filmografia de Coutinho (confira todos seus filmes no box ao lado), ganhou uma cópia restaurada que foi exibida pela primeira vez na Paraíba duas semanas depois da visita do cineasta para colher depoimentos para o material extra do DVD, no final de janeiro do ano passado, na abertura da 3ª Mostra Noite de Estreia, no Box Cinépolis (Manaíra Shopping), em João Pessoa.
O paulistano também ficou surpreso em saber que o seu último longa-metragem, As Canções (2011), que explora a memória afetiva das pessoas pela música, passou no circuito comercial por aqui.
Para a TV, o cineasta produziu vários programas (de 1975 a 1984, sempre rodando em 16mm) para o Globo Repórter.
Declarou, inclusive, que foi durante as férias na Rede Globo que retomou o projeto de Cabra Marcado para Morrer.
Dentre seus outros documentários se destacam Babilônia 2000 (2000), onde acompanha os preparativos para a chegada do novo milênio em comunidades do morro da Babilônia, no Rio de Janeiro; Edifício Master (2002), ambientado em um tradicional prédio do bairro carioca de Copacabana, mostrando a vida de vários moradores; e O Fim e o Princípio (2005), onde sua equipe chega ao município de São João do Rio do Peixe, no Sertão paraibano sem pesquisa prévia, sem personagens, sem locações e nem temas definidos.
FICÇÃO X REALIDADE
Representado em dois longas-metragens, Eduardo Coutinho elevou sua filmografia a um novo patamar, promovendo um renovado (e experimental) diálogo entre o documentário e a ficção.
Em Jogo de Cena (2007), através de um anúncio de jornal, o cineasta convida oito mulheres para contar um pouco de suas histórias em frente às câmeras, tendo um teatro como cenário.
Promovendo uma reinvenção do gênero, o documentário mistura as personagens reais com a interpretações de atrizes.
Assim, o público desconhece quem é quem e a ‘realidade’ registrada se torna tênue.
Em Moscou (2009), ele continua a discussão da relação entre a realidade e a invenção. O espectador acompanha os ensaios de um grupo de teatro que monta uma adaptação de Três Irmãs, do russo Anton Tchekhov (1860-1904), que jamais será apresentada.
Mesmo diante dessa originalidade frente ao documentário, Eduardo Coutinho não se considerava um vanguardista ou um gênio do gênero. “Eu me interesso pela vida das pessoas”, declarou quando esteve em João Pessoa, um ano atrás. “Não tem essa de ser original, não. Você vai e vê o que acontece”, resumiu.
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