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VIDA URBANA

Campina Grande,fonte de inspiração

Cidade inspira escritores que a retratam em seus romances, reforçando sua permanente busca pelo novo.

Publicado em 11/10/2012 às 6:00

O Jornal da Paraíba me pede um artigo sobre Campina Grande como fonte de inspiração, e talvez valha a pena discutir algumas questões ligadas a esse conceito tão interessante de “inspiração artística”. Claro que um grande número de poetas e escritores usou em algum momento a sua terra natal como tema ou ambientação para o que escreveu. Sem sair da Paraíba, basta lembrar José Lins do Rêgo e seus engenhos de cana-de-açúcar, Ariano Suassuna e sua Taperoá, na prosa; na poesia, José Nêumanne e seu curioso contraponto entre Barcelona, Borborema. Infelizmente não acompanho, por numerosas razões, a jovem literatura de Campina. Tenho certeza de que perco muita coisa boa e útil, porque a cidade continua fascinante em seu crescimento, suas contradições, suas distorções, sua criatividade, seu moído permanente em busca do Novo. Uma busca tão ansiosa que muitas vezes a faz imaginar que o antigo é inimigo do Novo, quando na verdade um é o terreno onde se planta o outro. Nada que é Novo brota no ar.

Sempre há outros precedentes, mas para mim Campina Grande surgiu como fonte de inspiração literária quando a vi retratada nas páginas de Nadir, o romance que Ricardo Soares publicou em 1975, com prefácio e introdução de dois amigos nossos que já se foram: Jackson Agra e Fernando Porto. Naquela edição artesanal eu encontrei Campina Grande com o susto e o estranhamento de quem pela primeira vez escuta a própria voz num gravador. Ali estavam a Flórida, o Cine Capitólio, a Praça da Bandeira, os cabarés das Boninas e da rua Manoel Pereira de Araújo, a churrascaria Dallas, os pequenos edifícios de apartamentos baratos. E mais do que os ambientes estavam as pessoas: os estudantes desocupados, os pequenos funcionários públicos, os balconistas das casas de comércio da rua João Pessoa, as meninas de programa de José Pinheiro, os marginais batendo calçadas na madrugada deserta, à procura de confusão.

E tudo isto escrito por um amigo meu, por um cara que bebia comigo na Riviera, cofiando o bigode e respondendo minhas perguntas de aprendiz com uma risada silenciosa.

Os outros romances de Ricardo Soares que li em seguida (Absurdo, publicado em 1979 pela Grafset, e outro que vi apenas em manuscrito, A Instituição) reforçaram essa sensação vertiginosa de uma construção-em-abismo, de estar dentro de uma cidade real vendo-a estilhaçada e recomposta de maneira estranha pela imaginação alheia. Talvez seja isso (pensei na época) que faz avançar tanto a literatura parisiense ou londrina: o hábito de comparar real e ficção a cada novo romance que é lançado. Quem vive em Roma, em Los Angeles, em Moscou, tem um espelho literário permanente onde se ver refletido. Quem vive em cidades menores acha natural que os livros “se passem” nas outras cidades, essas grandes capitais do mundo: as cidades onde a literatura acontece.

Um pouco desse estranhamento me voltou depois quando vi W.J. Solha fazendo com Pombal o mesmo que Ricardo tinha feito com Campina – principalmente através do recente Relato do Prócula, com seus comerciantes e pequenos fazendeiros sertanejos que ouvem música erudita, conhecem a pintura clássica e leem os grandes autores nos intervalos dos cuidados com o gado ou a plantação. Uma classe média interiorana, semirrural, semiurbana, que já viajou pelo mundo mas se estabeleceu em seu sertão de origem. Homens que ouvem rádios estrangeiras e compram livros pelo reembolso postal, sem precisarem sair do sertão paraibano de cujo pó são feitos.

Quando comecei a me interessar a sério pela literatura de ficção científica e de fantasia acompanhei o esforço dos escritores norte-americanos em busca da construção de um passado mítico para si mesmos. Os Estados Unidos são um país ainda novo, ainda cheirando a tinta: foi em 1620 que os peregrinos do Mayflower trouxeram o grão civilizatório de onde a grande nação se desenvolveu. O passado mítico buscado pelos norte-americanos do século 20 regrediu, portanto, à velha Inglaterra, à velha Bretanha, aos mitos arturianos e às lendas célticas. Um movimento semelhante ao que Ariano Suassuna fazia com seu sertão transfigurado, indo buscar na Ibéria distante os mitos sebastianistas que alucinam seus personagens.

Meu romance A Máquina Voadora (Rocco, Rio de Janeiro, 1994; Caminho, Lisboa, 1996) era uma tentativa, não sei até que ponto bem sucedida, de reproduzir esse movimento em busca de um passado lendário e remoto, usando-o para empapar de fantasia o texto e espremer dele algumas gotas de substância do tempo presente. A cidade que inventei chamava-se Campinoigandres, num trocadilho com o termo “noigandres”, a palavra misteriosa que os estudiosos da poesia provençal passaram décadas sem conseguir traduzir e que foi, por essa mesma carga de mistério, adotada como palavra-símbolo pelos poetas concretistas de São Paulo.

Campinoigandres, situada no alto da imaginária Serra do Calabouço, entre Portugal e Espanha, é uma cidade símbolo dos 700 anos de dominação árabe na Península Ibérica. Um cadinho de mistura cultural que em mim foi se formando durante anos de leituras e de duas semanas que passei entre Lisboa e Sevilha em 1989. O livro conta a história de Ramiro Gamboa, um sapateiro humilde que todo fim de semana junta-se a um comboio de tropeiros que sobe a Serra para vender seus produtos na feira daquela cidade; e da série de acasos que revela a Ramiro a existência, no palácio de um árabe rico, de uma máquina voadora que teria sido construída por Jofre Gamboa, seu pai.

Já me perguntaram, em debates ou mesas redondas: “Mas o que tem a Paraíba a ver com os árabes?”. Tive que explicar a esses leitores cariocas e paulistas que a colônia árabe (mais precisamente, sírio-libanesa) sempre foi importante na minha cidade, uma cidade que sempre teve uma poderosa atração para estrangeiros e forasteiros de todo tipo. Se antes dos brasileiros vieram os portugueses, antes destes vieram os árabes. Toda fantasia ibérica é em certa medida, também, uma fantasia arábica. O mesmo direito que têm os californianos de explorar os mitos do Rei Artur temos nós, paraibanos, de recorrer às Mil e Uma Noites.

Como se vê, a inspiração não precisa necessariamente recorrer à técnica realista, crua, despojada, faca-no-osso, que Ricardo Soares punha em movimento em seus romances. Ela pode recorrer também a essa transfiguração mítica que Ariano sugeriu e pôs em prática na criação, no Romance da Pedra do Reino de uma Taperoá geograficamente precisa mas onde cabe (e nisto o autor insistiu com frequência) tudo que aconteceu no Brasil durante um século. Minha Campinoigandres não se limitou ao romance de 1994, mas produziu também contos como “História de Maldun, o Mensageiro” (1989, em A Espinha Dorsal da Memória) e “História de Cassim, o Peregrino, e de um crime perfeito que Deus castigou” (em Mundo Fantasmo, 1996).

Campina Grande está presente ali como instrumento, não como tema; ela não é, por assim dizer, a paisagem que o livro fotografa, é a máquina fotográfica de que o livro se serve para fotografar aquele mundo.

Campina Grande e suas desigualdades sociais, suas elites ao mesmo tempo sofisticadas, cosmopolitas, predadoras e implacáveis. Sua busca permanente do dinheiro, do lucro, do comércio, da troca; e, por entre o tiroteio invisível dessa guerra econômica a existência de alguns indivíduos desajustados que sonham com poesia, fantasia e arte. A cidade dos bardos e dos coronéis que pagam com mão aberta para se verem elogiados em verso. A cidade que produz um interminável mar de histórias a respeito de si mesma, recortando e colando anedotas milenares e afirmando que aquilo pode acontecer “somente em Campina”. A cidade dos artesãos, dos mecânicos, dos pequenos cientistas de quintal, dos inventores anônimos de máquinas fabulosas que a humanidade jamais conhecerá. Em cada esquina da Rua João Suassuna, um McGyver de macacão capaz de transformar um revólver Taurus em Smith & Wesson; em cada laboratório de Bodocongó um artesão eletrônico capaz de transformar um PC em Mac.
A inspiração não se traduz necessariamente em homenagem saudosista, em ufanismo patriótico. Ela acontece com frequência, na literatura e na arte, quando, como se diz popularmente, o indivíduo vai embora do lugar, mas o lugar nunca vai embora dele. Quando esse lugar torna-se em sua memória uma vela que nenhum vento, nenhum sopro apaga. Uma música que tanto embala quanto nunca mais deixa dormir.

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Jornal da Paraíba

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