COTIDIANO
Itália se torna mais xenófoba
Nos últimos dez anos, relação com o mundo islâmico muda radicalmente após os ataques nos EUA.
Publicado em 11/09/2011 às 8:00 | Atualizado em 26/08/2021 às 23:29
Graziano Graziani (Opera Mundi)
De Roma
A relação da Itália com o mundo islâmico mudou radicalmente após os atentados de 11 de Setembro de 2001. O país mediterrâneo, que durante séculos se manteve ligado aos vizinhos árabes do norte da África, viu nos últimos dez anos uma escalada de valores xenófobos e, mais especificamente, de um antiislamismo que ganhou ressonância com a ascensão de partidos conservadores e de extrema direita no país.
Na última década, a vida de muçulmanos e outras minorias étnicas ficou bem mais difícil na Itália. Apoiado no clima de perseguição que se espalhou pelo continente, o Parlamento italiano aprovou diversas leis e dispositivos que endureceram a política antiimigratória, ampliando o período de detenção de imigrantes ilegais e exigindo a identificação por impressão digital de cidadãos não-europeus que queiram viver no país.
Nos dias imediatamente seguintes aos atentados, uma troca de cartas entre Oriana Fallaci e Tiziano Terzani, em um dos principais jornais do país, o Corriere della Sera, resumiu a tensão ideológica que passou a dividir a Itália. Os dois mais famosos jornalistas de guerra italianos – o segundo preferia definir-se como "jornalista de paz"— alinharam-se em posições opostas: Fallaci queria responder à ameaça do terrorismo com uma guerra de bombas; Terzani convidava o Ocidente à autocrítica e à não-violência.
O discurso de Fallaci, que mais tarde foi condensado em um livro de título eloquente, "La rabbia e l'orgoglio" (A raiva e o orgulho), marcou o início de uma violência verbal contra o Islã, que também atingiu os defensores do diálogo. Eles são acusados de enfraquecer a já volúvel identidade cristã do Ocidente.
A radicalização contra o Islã não ficou restrita ao debate nos meios de comunicação e passou a influenciar diretamente a política italiana. A volta de Silvio Berlusconi ao poder, após o fracasso de gestões do Partido Socialista, abriu espaço para o fortalecimento de grupos extremistas, como a Liga Norte.
Um dos expoentes da parcela mais xenófoba e antiislâmica do partido, o deputado Mario Borghezio, chegou a afirmar recentemente que as ideias do fundamentalista cristão Anders Behring Breivik, autor do atentado que matou 70 pessoas na Noruega, são justas e aceitáveis e que a preocupação do assassino norueguês quanto à transformação da Europa em "Eurábia" é a mesma que a sua e de intelectuais como Oriana Fallaci.
Ainda que menos rudes que as afirmações de Borghezio, as palavras de Fallaci não tinham meio-termo: a escritora falava de inferioridade cultural e usava expressões como “cuspir na cara” e “nenhuma piedade". Os seus posicionamentos naquele setembro de 2001 inauguraram um tipo de intelectual inédito na Itália: o ateu que reconhece nos valores cristãos as raízes da identidade ocidental, uma figura que cumpriria na Itália o papel desenvolvido nos Estados Unidos pelos teoconservadores.
Em 2006, pouco antes de morrer, Oriana Fallaci voltou a investir contra o Islã, escrevendo que teria "explodido" uma mesquita cuja construção era considerada na província de Siena, porque ela, da Toscana, não permitiria um minarete na "paisagem de Giotto". Evidentemente, a escritora e jornalista não havia aceito o conselho de Terzani também ele toscano, morto dois anos antes em 2004 – com o qual concluiu a sua carta aberta: “Espero que você encontre a paz. Porque se ela não está dentro de nós, nunca estará em qualquer lugar”.
O que Terzani criticava na colega era o fato de negar não somente as razões do "inimigo", mas também a sua humanidade: "o segredo da atrocidade de todas as guerras". Uma atitude herdada por uma parcela do debate público, embora de maneira menos revelada.
Segundo Paola Caridi, jornalista especialista no mundo árabe e autora do blog "Invisibile Arabs", esse é um dos aspectos mais claros da onda de islamofobia que assolou a Itália nos últimos dez anos. "Poderia-se supor", diz Caridi, "que com o fim das guerras no Afeganistão e no Iraque o vocabulário se tornaria menos violento.
Aconteceu o oposto. Os meios de comunicação foram os primeiros a recobrar uma violência verbal sempre crescente. O que não mudou de 2001 até hoje foram as argumentações: são sempre as mesmas, de Fallaci em diante", disse.
Código ético é ignorado
Antes do 11 de Setembro vigorava na Itália uma espécie de código ético, o qual Paola Caridi define como uma "autocensura positiva", que do fim da Segunda Guerra Mundial em diante determinava que certos limites na relação com o outro não poderiam ser ultrapassados, sobretudo nos jornais e na televisão. Depois do 11 de Setembro, esses limites passaram a ser completamente ignorados.
Mudou também a posição da Itália em relação ao mundo árabe. "A Itália tinha um papel de mediação com o mundo árabe, reconhecido pela comunidade internacional, uma política inaugurada por Andreotti e Craxi. Com o governo Berlusconi este papel se perdeu: passamos do 'amigo crítico' em relação à Israel dos anos 1970 ao 'melhor amigo' de Israel no Mediterrâneo”, diz Paola Caridi. “A posição da Itália agora é polida, de coalizão, e como consequência o seu papel político desapareceu.
Fala-se diretamente com Israel ou com os palestinos. Afinal, de que adianta hoje consultar a Itália?"
Um dos efeitos dessa mudança de política pode ser observado em 2011, com a Primavera Árabe. Os diplomatas italianos não souberam interpretar o que estava acontecendo, porque não dispunham mais do profundo conhecimento do mundo árabe, antes um patrimônio tradicional da diplomacia italiana. Essa transformação não diz respeito somente aos aspectos técnicos da política externa, mas representa uma verdadeira mudança cultural, cujos resultados não escapam aos protagonistas das revoltas do Egito, Tunísia, Líbia, Síria.
"Antes os movimentos árabes viam a Itália como um interlocutor importante", explica Paola Caridi. "Hoje, mais que nunca, os manifestantes da Praça Tahrir miram a França e a Inglaterra, e não a Itália”. Segundo a jornalista, a percepção dos países árabes sobre a Ítalia mudou muito nos últimos dez anos. “Os árabes têm bem impresso na memória o discurso de Berlim, em que Berlusconi falou de superioridade cultural do Ocidente. E a memória, nos países árabes, é algo que permanece, que não se dissolve como a nossa depois de um ou dois anos”, observa.
A crescente desconfiança do mundo árabe sobre a Itália é paralela à intensificação da ignorância da Itália em relação aos seus vizinhos. “É algo que aterroriza os manifestantes da Praça Tahrir, considerando que no passado a Itália era a extremidade mais próxima da Europa, não somente do ponto de vista geográfico.", diz Paola Caridi.
Hoje, depois de uma década de guerra ao terror, a Itália ainda está envolvida em um fronte distante como o Afeganistão e pagando um alto preço – só em julho de 2011 foram mortos dois soldados de 28 e 29 anos – pela participação na guerra do Iraque, pactuada com os Estados Unidos para acalmar a própria opinião pública.
Enquanto isso, não é capaz de decifrar o que acontece "a dois passos de casa", tendo perdido o seu papel estratégico no Mediterrâneo. Um balanço que especialistas italianos em Oriente Médio, como Paola Caridi, julgam profundamente negativo. O medo do diferente, especialmente se "islâmico", está se tornando cada vez mais popular ao longo da península, seja no “rico” norte, assustado com a crise econômica, seja no sul "pobre", ponto de desembarque natural para os muitos imigrantes que tentam a sorte na Europa.
São os mesmos imigrantes, muçulmanos ou não, que são empregados nos campos agrícolas – um trabalho que os italianos já não querem fazer –, isso considerando que eles tenham conseguido chegar à Itália. O boletim de mortes ao longo do trecho marítimo que separa a Itália do norte da África se amplia dia após dia.
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