CULTURA
Ruas são transformadas em palcos para artistas nos centros de JP e CG
Sem local fixo para morar e trabalhar, pessoas ganham a vida levando música e malabares em espaços públicos.
Publicado em 27/03/2016 às 6:00
Com o sol na telha, o artista de rua não esmorece. Pega na bolsa instrumentos que parecem pinos de boliche, atira-os ao alto, ainda com os olhos atormentados pela claridade. O artefato gira cinco, seis vezes no ar, e repousa na mão do malabarista; esquerda, direita, esquerda, direita, vez ou outra uma manobra mais arriscada. No fim do show de dois minutos sob o semáforo, nenhuma das claves tocou o asfalto, o artista se curva diante da plateia de aço e vidro, depois sai de janela em janela para ganhar seu sustento.
A arte de rua, apesar de ainda enfrentar um estigma social, é um movimento que vem crescendo nos ambientes urbanos a reboque dos debates acerca da apropriação do espaço público. O que para a maioria das pessoas é local de trânsito, passagem, para os artistas é o escritório. Muitos são nômades, passam uns dias aqui, na semana seguinte pegam a estrada e aparecem em outro lugar. É o caso do casal Igor Renée e Mariana López.
Ele já visitou todos os estados brasileiros – ela conheceu 21 –, sem nunca ter um pouso fixo, nem perspectivas de longo prazo acerca dos lugares para onde vai. O estilo de viagem varia. Geralmente, o casal queima os músculos das coxas pedalando de um estado para outro. Mas, às vezes, uma carona vai bem. A hospedagem nunca é garantida. “Às vezes ficamos em centros culturais, em casas de movimentos culturais, hotéis e hostels próximos a rodoviárias ou casas de conhecidos. Quando o roteiro é na praia, ficamos na praia mesmo, ou em praças, depende do tamanho e da tranquilidade da cidade” conta. Em João Pessoa, ficaram em um hotel.
O estilo nômade de viver associado à produção artística não é mais algo inimaginável. No mundo inteiro, a desaceleração do consumo e a conscientização das pessoas sobre trabalho e satisfação são fatores que estimulam a viver de maneira alternativa. Em João Pessoa, vários artistas latino-americanos podem ser vistos trabalhando nos cruzamentos e semáforos – não por falta de opção ou trabalho, mas por escolha. E, na semana seguinte, partem para outra cidade, estado ou país, assim como a argentina Mariana e o paulistano Igor.
Para os artistas de rua, o trabalho não é uma questão de conforto, muito menos de dinheiro. É uma escolha de vida, escolha que traz consigo certos privilégios e penitências, assim como qualquer outra.
"O nosso sonho é continuar levando nossa arte para outros lugares, estamos indo para Manaus (AM) pegar nossas bicicletas, depois vamos subir para Venezuela, Colômbia e Panamá, continuar nossa viagem até o México e aí descer pela outra parte do continente até chegar à Argentina”, conta Mariana.
Por outro lado, nem sempre o poder público torna a vida dos artistas mais fácil. Em algumas metrópoles brasileiras, como Rio de Janeiro e Curitiba, a atividade de artista de rua é regulamentada por leis municipais. Em João Pessoa, isso não acontece. Em 2013, o vereador Ubiratan Pereira apresentou uma proposta de regulamentação. A proposta, no entanto, recebeu veto total após a leitura em plenário, no dia 20 de agosto daquele ano. De acordo com o vereador, está sendo estudada uma reformulação do projeto para a nova propositura; a previsão é que seja apresentado à Câmara ainda no atual semestre.
Ofício que tem a alegria como ferramenta
Com a mão direita adornada por aliança artesanal, Mariana limpa a camiseta e arruma o cabelo do parceiro. “Como se eu fosse ficar mais bonito”, brinca Igor, com a testa suada sob um sol pesado no meio do Ponto de Cem Réis, Centro de João Pessoa. A união é informal, mas o amor pode ser percebido em cada gesto. Igor e Mariana são parceiros também no trabalho artístico de rua, um serviço que eles tomam por missão de vida.
Ele, com 32 anos, trabalha há 14 viajando pelo Brasil – já percorreu todos os estados brasileiros e é recordista de maratona com monociclo. Já chegou a percorrer 61km em 5h45min. Ela, com 26, é pianista erudita, começou a tocar com sete anos, e veio de Buenos Aires. Os dois se conheceram há três anos em João Pessoa, e desde então vivem e viajam juntos. Até o momento, foram 110 cidades no Brasil e mais quatro países: Venezuela, Argentina, Bolívia e Uruguai.
“É difícil viajar com um piano, então ando com o acordeom mesmo”, fala Mariana, com bom humor e um sotaque hispânico fácil de entender. O trabalho sob o sol é difícil de encarar por conta da pequena mancha de vitiligo ao redor do olho direito, mas ela sustenta os acordes ecléticos – seu repertório inclui tango, milonga argentina, chorinho, baião e melodias clássicas francesas e italianas. Vez por outra, assume os facões ou claves para números em dupla.
Quando Igor tira do chapéu as bolas de rolling e a bola de contato, o número revela duas pessoas que funcionam como uma. De acordo com o ritmo e a melodia, o artista elabora sua dança. O controle é absoluto sobre cada passo, músculo e movimento – o mesmo pode ser dito sobre os olhos da plateia de transeuntes, que acompanham cada cadência. A única medida possível é a perfeição. Um erro, e o número inteiro se perde. “Quando a gente transmite o que gosta de fazer, as pessoas têm uma reciprocidade muito boa”, diz Igor.
Nem sempre. “Ontem passamos em frente à Casa da Criança com Câncer e sentimos que poderíamos fazer algo mais”, conta o malabarista. Na impossibilidade de arrancar o câncer das crianças, queriam tirar alguns sorrisos – ato que libera um hormônio chamado ocitocina, que provoca sensação de prazer e fortalece a imunidade. Porém não puderam oferecer sua arte. “Disseram que as crianças não ficavam lá, mas é uma casa para crianças com câncer”, protesta. “Queremos usar a arte como uma forma de gerar algo mais profundo nas pessoas”, diz.
O casal explica que mesmo quando o clima entre os dois é de estresse – o que não acontece muito – o trabalho não pode ser prejudicado. É um relacionamento que transcende o pessoal, que transpira arte a cada arremesso de facão debaixo do semáforo. Não é apenas habilidade. É arte e amor em sincronia.
Arte de rua não é vista como trabalho sério
“Alguns aceleram para cima no trânsito, levantam o vidro, xingam quando a gente está participando de uma roda na praça. A rua é isso”, relata o artista Allan Barros, que desenvolve um projeto com palhaçaria em João Pessoa, Campina Grande e outras cidades paraibanas. Apesar disso, conforme explica Barros, a maior parte das pessoas prefere reações mais civilizadas, “que abraçam, sorriem, veem aquilo como uma coisa libertadora. É uma arte marginal, e isso faz com que as pessoas olhem de outra forma, não vejam aquilo como trabalho, mas como esmola”, explica.
O palhaço Allan Barros conta que, entre palavras de agressão e de estímulo, os gestos gentis superam os hostis – tanto em número quanto em significado. “Para mim, o trabalho na rua é essencial, acho que tudo flui desse tipo de arte, do inesperado, do improviso”, acredita.
Rir e fazer rir
Allan Barros é um palhaço diferente daqueles que atuam no circo. Começou a trabalhar no Teatro de Sumé, em 2009. Em 2014 se mudou para João Pessoa com uma promessa de emprego que não se concretizou. Aí começa o seu arco.
Já conhecia a família de circo Los Iranzi, formada por artistas itinerantes, desde dois anos antes. Quando soube que não conseguiria o emprego, foi convidado para trabalhar com o grupo como o Palhaço Salsicha. “Nesse mesmo ano, apareceu a oportunidade de entrar para a faculdade e comecei a estudar na UFPB.
A essa altura, já fazia suas próprias apresentações e arriscava locais públicos. Foi quando, em Campina Grande, conheceu o palhaço Ed Valadares e os dois passaram a trabalhar juntos. “O trabalho se expandiu, tanto nos sinais quanto passando o chapéu em rodas”, diz. Já foram dezenas de apresentações em espaços públicos em João Pessoa, Campina Grande, Rio Tinto, Monteiro, Alagoa Grande, Sumé, São José de Piranhas, Natal, Caruaru e mais alguns municípios.
“Estou na rua por uma escolha, não por necessidade. O que eu mais procuro é o contato com as pessoas, o olho no olho, uma relação mais humana que não posso encontrar em um teatro fechado, por exemplo”, explica.
“Certa vez uma mulher baixou o vidro do carro e me mandou ir trabalhar, estudar, me considerou um vagabundo. E eu perdi a cabeça na hora. Em seguida, um colega que também trabalhava na rua veio e tentou me acalmar, disse que é assim mesmo. Estamos à mercê dessas coisas, todos os dias tenho que lidar com isso e não posso perder a cabeça. Em compensação, outro dia um cara desceu do carro, apertou minha mão e disse que ficou agradecido, que eu proporcionei um dia melhor para ele”, relata o artista.
As situações antagônicas demonstram o que é o trabalho na rua: fúria, paixão, bondade e toda a miscelânea de sentimentos que as interações humanas podem proporcionar. “O palhaço tem um poder de quebrar a lógica e revolucionar o momento, e a rua faz com que esse poder aumente. A proximidade com pessoas transforma. Mas em todos os lugares que eu vou, há pessoas que não gostam e outras que se identificam”, conta. “Quero antes de tudo me enriquecer como pessoa e fazer da arte uma ferramenta de humanidade”, conclui.
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