COTIDIANO
Traidores são os que declaram guerra imorais, diz desertor dos EUA que lutou no Iraque
Tido como “ausente sem autorização” pelo exército, ele viveu na clandestinidade por 19 meses, até entrar com um pedido de asilo político em 2008.
Publicado em 11/09/2011 às 8:00 | Atualizado em 26/08/2021 às 23:29
Regina Cazzamatta (Opera Mundi)
De Berlim
Em 21 de abril de 2007, o soldado norte-americano André Shepherd, de 34 anos, fez as malas, sacou todo o dinheiro que tinha na conta bancária e deixou o apartamento em Ansbach, Alemanha, onde há uma base militar dos Estados Unidos. Motivo: ele se recusou a voltar ao Iraque. Para Shepherd, a guerra é ilegal e uma violação dos direitos humanos.
Tido como “ausente sem autorização” pelo exército, ele viveu na clandestinidade por 19 meses, até entrar com um pedido de asilo político em 2008. A história de Shepherd começou como a de muitos outros soldados dos EUA. Nascido em Cleveland, estudou informática, mas não ganhava o suficiente. Com a perspectiva de um emprego estável e bem remunerado, ele entrou para o exército, onde se tornou mecânico de helicópteros e foi estacionado na Alemanha.
Logo depois, foi enviado ao Campo Speicher, próximo a Tikrit, no Iraque. Ele mantinha os helicópteros AH-64 Apache em boa forma, 12 horas por dia, seis dias na semana. Equipados com mísseis e metralhadoras, os modelos consertados por Shepherd foram usados, por exemplo, nas batalhas em Fallujah, em 2004. No mesmo ano, a CIA declarou que não havia armas de destruição em massa no Iraque e Shepherd acreditou que o conflito estava perto do fim.
Em 2005, retornou à Alemanha. Nesse período, começou a ler mais sobre os bastidores da guerra. Desertou dois anos depois ao receber a ordem de retorno ao Iraque. No entanto, em abril desse ano, o BAMF (Departamento Federal para Imigração e Refugiados alemão) negou seu pedido de asilo. Nesta entrevista exclusiva ao Opera Mundi, Shepherd explica o que o levou a se rebelar contra a “Guerra ao Terror” dos EUA, iniciada depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001.
O que levou o Sr. a desertar?
Não lutaria mais uma guerra de agressão, baseada puramente na ambição e em interesses pessoais. Como o exército provavelmente me perseguiria e tentaria me forçar a voltar ao Iraque, a solução foi nunca mais voltar.
Como foi a experiência no Iraque?
Assim como a maioria dos soldados, eu não tive problemas durante a primeira campanha, porque, naquela época, acreditava que o governo estava dizendo a verdade. Em 2004, nos contaram sobre a não existência de armas de destruição em massa. Começamos a imaginar o que estava realmente acontecendo no Iraque, especialmente quando eles começaram a surgir com novas razões para nossa permanência lá.
Como era o convívio entre os militares norte-americanos?
Os homens e mulheres com quem trabalhei eram boas pessoas, dedicadas a completar a missão da melhor maneira possível. Eles acreditavam estar fazendo a coisa certa: trazer paz e prosperidade para os iraquianos e, em longo prazo, manter os EUA “a salvo dos terroristas”. Ao menos era o que eles diziam quando o comandante estava ao redor. Em conversas privadas, ouvi diversos soldados, em particular os mais novos, dizendo que, na realidade, eles não sabiam ou entendiam completamente porque passariam um ano longe de casa, em uma terra diferente.
Eu tinha aqueles sentimentos, a sensação inquietante estava começando a me incomodar cada vez mais. No começo, era quase que como uma voz na minha cabeça dizendo que estávamos cometendo um terrível engano. Quando iraquianos precisavam construir trincheiras para defender nossa base de ataque, o olhar deles não parecia ser de agradecimento. Alguns tinham um olhar de medo, enquanto outros, de raiva. Comecei a me sentir não como um herói, mas como um cruel opressor, que ajudou a destruir a vida de pessoas que tinham um orgulho próprio.
Comecei a me sentir confuso e sujo por dentro, mas não conseguia saber exatamente porque. Nossa unidade fez coisas boas, como ir às escolas distribuir livros e roupas para as crianças. Isso aliviou minha consciência, mas continuava pensando: se não tivéssemos invadido o Iraque, essas pessoas precisariam de ajuda?
Como o Sr. percebeu que a guerra não era o caminho?
Perto do final de novembro de 2004 comecei a pesquisar a fundo as causas da guerra. Não apenas a do Iraque, mas toda a “Guerra ao Terror” [iniciada por George W. Bush]. Acredito que uma guerra deva ser sempre a última medida. Passei a reconsiderar a posição dos EUA na guerra global e a ver sérias inconsistências entre o que nos diziam e o que realmente estava acontecendo. Saddam Hussein realmente governou o Iraque com mãos de ferro, porém, eu não consegui encontrar nenhum argumento convincente que provasse que a intenção daquelas pessoas era matar norte-americanos. Ao questionar meu sargento, escutei que diversas pessoas no exército também tinham perguntas, mas era o dever deles servir. “Nos alistamos voluntariamente”, me disseram.
O Sr. chegou a se considerar como um traidor da pátria?
Não. Os verdadeiros traidores são os que declaram e sustentam essas guerras imorais; que continuam aprovando leis como o ato U.S. PATRIOT; que torturam em nosso nome; que roubam a riqueza da população para dar aos banqueiros. Considero absolutamente injusto e criminoso que soldados que decidem resistir contra esta tirania sejam classificados como traidores, pois estamos defendendo a Constituição, a qual juramos proteger.
O Sr. considera a guerra do Iraque ilegal. Por quê?
Por onde começo (risos)? Primeiro, nós não temos o direito, como nação, de invadir outra nação baseado no engano. O Iraque não era uma ameaça e não tinha nada a ver com os ataques de 11 de Setembro de 2001. Leis foram claramente quebradas, não só em âmbito nacional, mas também internacional. Nós não temos o direito de entrar na casa de alguém, assassinar todo mundo e dizer que foi “por engano”. Estaríamos na prisão por causa disso. Por que então o presidente dos EUA pode fazer isso com países?
Por que seu pedido de asilo foi negado na Alemanha?
Quero ressaltar que gosto da Alemanha e não tenho nada contra o país. Contudo, tenho de exercer meus direitos de liberdade de expressão e dizer que a resposta negativa do governo foi puramente política. Não fiquei surpreso com a resposta, pois acredito que, se o governo tivesse dito sim a minha causa, teria condenado as ações dos EUA.
O presidente Barack Obama disse que até o final do ano as tropas seriam retiradas do Iraque. Como o Sr. vê essa promessa?
Com ceticismo, porque Obama já disse inúmeras coisas e nenhuma delas aconteceu de fato, com exceção da expansão da “Guerra ao Terror”. É preciso entender que, mesmo se as tropas forem, de fato, retiradas, o Departamento de Estado ainda atuará com um exército de mercenários. O Iraque continuará sofrendo, mas isso não importa para o governo. Somente uma retirada ajudará a população iraquiana.
O Sr. Obama é o maior ator da face da terra, ele piorou o que Bush começou. Parece que a maioria dos oficiais dos EUA trabalha para alguém que não os norte-americanos. Gostaria de saber para quem.
O Sr.se sente seguro?
Não sei ao certo. Enquanto durar o processo do pedido de asilo, não há risco de eu ser deportado. Entretanto, os EUA têm um amplo alcance internacional e, se eu interromper o pedido de asilo, quem pode garantir que eles não irão me “render” e me mandar de volta para os EUA? Se eles fariam isso? Ninguém sabe. Já fizeram alguma vez? Sim! Não é algo que eu me preocupo no dia-a-dia, mas está na minha cabeça.
Quais são seus planos?
Sigo lutando. Já recorremos da decisão para a corte regional na Bavária e estamos aguardando ansiosamente a próxima etapa do processo. Enquanto isso, continuarei falando com o máximo de pessoas sobre o assunto, pois é muito importante deixar a opinião pública consciente da resistência dos soldados contra as ações imperialistas dos EUA. Espero que todas as pessoas tenham coragem de lutar contra esse sistema de guerra e pobreza forçada, que cresce cada vez mais. Por meio de uma resistência persistente e pacífica, nós podemos virar a maré da tirania sobre suas próprias cabeças e fazer esse mundo mais seguro para todos.
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