CULTURA
Sensibilidade não é sinônimo de TPM
Escritora gaúcha Luisa Geisler lança romance e fomenta o debate sobre papel da literatura no combate ao machismo.
Publicado em 18/02/2015 às 6:00 | Atualizado em 22/02/2024 às 11:32
O exemplo é dado pela própria Luisa Geisler: Maria é uma mulher forte e independente que, após o término de uma relação de 5 anos, viaja para Paris em busca de sua real essência. Uma escritora escreve um livro sobre Maria, e o que ela é? Uma autora de chick lit. Já João é um homem forte e independente que, após o término de uma relação de 5 anos, viaja para Paris em busca de sua real essência. Um escritor escreve um livro sobre João e o que ele é? Um autor de literatura brasileira contemporânea. Não há por aí o termo “guy lit”.
“Acho que é um pouco machista como existe uma definição e não existe a outra. Nada contra chick lit, aliás, é um gênero que tem os seus fãs, mas por que a primeira parece tão 'chick lit' e a segunda parece tão mais universal?”, indaga a autora de Luzes de Emergência se Acenderão Automaticamente (Alfaguara, 296 páginas, R$ 39,90).
Desde o ano passado, Luisa vem lançando nas redes sociais a hashtag #leiamulheres, propondo a leitura dos livros escritos pelas descendentes de Virgínia Woolf (1882-1941). São delas, segundo a escritora, as canetas de onde brotam as particularidades que vêm mudando a cara de um cenário literário cada vez mais idêntico.
“Acho que mulheres acabam trazendo maior diversidade, por serem mais recentes no mainstream literário”, pondera. “E ainda há muitas barreiras, como narrar um problema de uma mulher sem que soe 'sentimentalismo', problema que um personagem homem demoraria mais para ter. No homem, a sensibilidade vira uma força, e na mulher, praticamente um sinônimo de TPM."
Embora reconheça que “mais do que mulheres escrevendo, personagens femininas ainda têm muito para se desenvolver”, Luisa Geisler escolheu, para o seu terceiro romance, narrar sob o ponto de vista de um homem: Henrique (“Ike”), um “gurizão desligado” que mora em Canoas (cidade do Rio Grande do Sul onde a autora nasceu) escreve sua história em cartas enviadas para Gabriel, o melhor amigo, que está em coma depois que bateu com a cabeça ao cair de uma rede.
Trata-se da primeira incursão de Luisa pelo romance epistolar, facilitada por sua já confortável utilização da primeira pessoa, uma constante nas narrativas de Contos de Mentira (2010) e Quiçá (2011), dois títulos com os quais ganhou o Prêmio Sesc de Literatura, consecutiva e respectivamente nas categorias de contos e romance.
“Uma coisa muito importante pra mim é o ponto de vista da primeira pessoa”, admite Luisa, rejeitando, porém, o ponto de vista neutro deste tipo de narrador. “Não existe essa neutralidade, uma pessoa não consegue ser totalmente neutra. Por mais que eu tente, os meus sentimentos vão mediar muito do que está acontecendo. Foi um desafio no caso do Henrique.”
Desafio sobretudo porque Ike, esse sujeito circunspecto que transita entre as linhas de trem urbano dos subúrbios de Porto Alegre, passa a se envolver com outro rapaz, uma relação cuja dimensão a autora tinha, mas o personagem não. “Ele não percebe as coisas totalmente. A própria homo/bissexualidade dele é algo que ele não entende direito”, ela explica, remetendo-se ao grande impasse. “E agora: como eu vou fazer um romance em primeira pessoa sobre um personagem que se envolve com outro cara sendo que meu personagem não entende aquilo como eu entendo? Como eu vou 'mostrar' (e não apenas dizer) o que ele entende?”
Outra constante nas narrativas desta jovem gaúcha de 24 anos, que além de prêmios coleciona graduações (ela tem passagens pelos cursos de relações internacionais e ciências sociais, e foi aprovada no ano passado em contabilidade empresarial), são as questões profissionais de seus personagens, algo evidente em Luzes de Emergência... “Acho que a questão de 'o que fazer com a vida' me é importante”, ela diz. “Não percebemos, mas o trabalho ocupa oito horas do nosso dia. Interagimos mais com chefes ou colegas do que com familiares, muitas vezes. Vejo um peso, sim, mas não vejo um peso no jovem. A pergunta 'de onde vem o dinheiro?' importa pra todo mundo.”
Luisa acaba de retornar de Nova York (EUA), onde participou de um programa de residência artística. Este ano ela trabalha em um romance, um projeto mais ambicioso, em suas palavras. "Eu me formei agora, então tenho dormido muito (risos). Minha rotina mudou muito justo com o fim da vida universitária, que sempre era minha prioridade número um. Já fui reprovada por não priorizar isso e é uma experiência bem ruim. Mas agora, tenho apenas as rotinas literárias, o que é bom. Quero tentar ficar esse ano sem estudar (formalmente). Vai ser a primeira vez em décadas."
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