China trava guerra própria

Antes dos ataques de 11 de Setembro de 2001, pais já lutava contra a diversidade étnica, onde islâmicos lutam pela independência há mais de dois séculos.

Piero Locatelli (Opera Mundi)
De Beijing

Apesar de estar fora do mapa do terror mundial, a China trava sua própria guerra desde antes dos ataques de 11 de Setembro de 2001. A versão chinesa da luta antiterrorista é diretamente ligada à diversidade étnica do país, especialmente na província de Xinjiang, no extremo-oeste do território chinês, onde separatistas islâmicos lutam pela independência há mais de dois séculos.

Os uigures são uma das 56 minorias étnicas chinesas. Na província, surgiu o Movimento Islâmico do Turquestão do Leste (MITL), que em 2002 entrou para a lista de facções terroristas elaborada pelos Estados Unidos e motivada pelos atentados em Washington e Nova York. Em Xinjiang, os uigures formam oito milhões de uma população de 21,8 milhões, conforme o censo nacional organizado pelo Bureau Nacional de Estatísticas, referente a 2010. Há dez anos, os uigures compunham 80% da província.

O governo e a mídia chinesa fazem comparações constantes entre a situação de Xinjiang e o terrorismo internacional. Após a morte de 22 pessoas em confrontos na região no último mês de julho, uma reportagem do China Daily, maior jornal em língua inglesa do país, afirmava que “um grupo de religiosos extremistas liderados por militantes treinados fora do país estava por trás do ataque”. Já um colunista do jornal comparava o incidente com os atentados da Al Qaeda. “O terrorismo tem sido longamente reconhecido como um problema de toda a humanidade, especialmente após o 11 de Setembro de 2001”, escreveu o colunista Pan Zhiping.

O governo chinês também emite comunicados na mesma linha. Após o assassinato do saudita Osama Bin Laden por forças norte-americanas, em março deste ano, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Jiang Yu, disse que “o terrorismo é o inimigo de toda a comunidade internacional e a China é igualmente vítima dele.”

Em 11 de agosto, o governo de Xinjiang lançou uma "campanha anti-terrorista" na região que deve durar até o dia 15 de outubro. Segundo comunicado oficial, o policiamento deve ser reforçado na área para "desmascarar os responsáveis e organizadores por trás das atividades terroristas". O comunicado também diz que "a frequência das atividades terroristas ocorrendo na região estão crescendo e devem ser freadas".

Região Xinjiang tem maioria islâmica

Xinjiang alternou períodos de independência e domínio chinês desde a ocupação da dinastia Qing na região, em 1755. Naquela época, ganhou o atual nome, que significa “nova fronteira” em mandarim. A atual ocupação data de 1949, quando o exército de Mao Zedong retomou a região. A área está sob domínio ininterrupto do Estado chinês desde então.

A região é a única na China de maioria islâmica, onde muçulmanos da etnia uigur formam a maioria da população. Grupos tentam estabelecer um Estado independente batizado de Turcomenistão do Leste. Xinjiang é a maior divisão administrativa da China e, caso se tornasse independente, seria o 18º maior país do mundo, com uma área um pouco maior que a do Irã, com 1.660 quilômetros quadrados.

Politicamente, Xinjiang compartilha desde 1955 o mesmo status do Tibete. É considerada uma “região autônoma”, o que em tese lhe daria maior liberdade legislativa. Para o governo chinês, a região é indispensável: rica em recursos naturais, Xinjiang é a principal produtora de petróleo e gás natural do país. Também é uma importante rota para a Ásia Central, fazendo fronteira com oito países.

Com isso, Xinjiang foi prioridade na “marcha ao oeste”, colocada em prática pelo governo central chinês a partir de 2000. Com o intuito de desenvolver regiões menos populosas do país, o governo começou uma política de obras de infraestrutura e ocupação de áreas povoadas por minorias étnicas e longe da costa leste.
Populações locais, como os uigures, acabaram perdendo postos de trabalho para os chineses han nas novas fábricas instaladas pelos mesmos chineses han.

Um gasoduto de mais de quatro mil quilômetros de extensão foi feito ligando a capital de Xinjiang, Urumqi, a Xangai. Novas linhas de trem foram construídas conectando cidades do interior de Xijniang a Urumqi. Uma linha de trens rápidos em construção deverá percorrer os 3.450 quilômetros de Pequim até Urumqi em cerca de 12 horas.

Antiga luta, novos terroristas

Os ataques de 11 de Setembro aconteceram enquanto o plano de desenvolvimento era gerado. O governo chinês viu uma oportunidade para tentar se reaproximar dos EUA e conseguir a simpatia do resto do mundo para sua ocupação de Xinjiang. Antes dos atentados, a relação sino-americana passava por um período turbulento. Em abril daquele ano, a colisão entre dois aviões militares – um de cada país – no sul da China causou uma crise diplomática.

Depois dos ataques, o ex-presidente chinês Jiang Zenmin ofereceu sua solidariedade ao presidente norte-americano, George W. Bush. No mês seguinte, a China declarou que separatistas de Xinjiang haviam sido treinados pela Al Qaeda em território afegão.

Um relatório da ONG Humans Right Watch, publicado em 2006, dizia que a China “usou oportunamente o ambiente criado pelo 11 de Setembro para clamar que indivíduos disseminando mensagens religiosas e culturais pacificamente são terroristas que simplesmente trocaram de tática”. Segundo o mesmo relatório, a ocupação chinesa não estaria trazendo o desenvolvimento à região. A marcha ao Oeste teria suprimido a cultura local e reduzido o acesso dos habitantes à água potável e solo fértil para a agricultura.

A situação continua violenta desde então. O maior ataque até hoje ocorreu em 2009, quando mais de 150 pessoas foram mortas e mais de mil ficaram feridas, entre uigures e chineses han. Outros 12 uigures foram condenados à morte após o atentado. Neste ano, dois confrontos no sul no mês de julho deixaram 22 mortos e levaram a atual ocupação e repressão maior na região.

Grupo MILT é considerado terrorista em 2002

Os EUA deram sinais de estarem ao lado das ideias chinesas sobre os separatistas nos anos seguintes a 2001. O grupo separatista MILT foi colocado na lista norte-americana de organizações terroristas em 2002. O grupo carrega esse status até hoje. Além dos EUA, a ONU e o governo de quatro outros países consideram o grupo como sendo terrorista.

No mesmo ano, 22 uigures foram presos na campanha norte-americana no Afeganistão. Todos eles foram levados para Guantánamo, base militar norte-americana em Cuba. Entre 2003 e 2005, porém, o Pentágono mudou o status dos prisioneiros para “não mais inimigos”. Os EUA entenderam que eles não apresentavam perigo para os norte-americanos. Com isso, os uigures seguiram presos em “Camp Iguana”, a parte mais amena e aberta de Guantánamo.

Segundo reportagem do jornal Washington Post, publicada em 2005, o governo norte-americano não quis enviar os uigures de volta para a China, o que significaria condescendência com o sistema penal chinês. A administração de Bush tampouco quis mantê-los no seu território, o que poderia estremecer as relações com os chineses. Outros 20 países teriam negado o pedido de asilo político.

Desde então, cinco presos foram enviados para a Albânia em 2006. Outros quatro foram para a ilha caribenha de Bermuda em 2009 e, no mesmo ano, seis foram enviados para a ilha de Palau, no Pacífico. Em 2010, os últimos dois foram para Suíça. Mesmo sem serem mais considerados inimigos dos EUA, os outros cinco presos permanecem em Guantánamo.