A esquerda não tem o direito de patrulhar Chico Buarque!

A esquerda não tem o direito de patrulhar Chico Buarque!

Com Açúcar, Com Afeto é de 1967. Chico Buarque escreveu no feminino. Na letra, ele dá voz a uma mulher submissa.

Termina assim:

E ao lhe ver assim cansado

Maltrapilho e maltratado

Ainda quis me aborrecer

Qual o quê?

Logo vou esquentar seu prato

Dou um beijo em seu retrato

E abro os meus braços pra você

Camisa Amarela é de 1939. Ary Barroso escreveu no feminino. Na letra, ele dá voz a uma mulher submissa.

Termina assim:

O meu pedaço me fascina

Me domina

Ele é o tal

Por isso não levo a mal

Pegou a camisa

A camisa amarela

Botou fogo nela

Gosto dele assim

Passou a brincadeira

E ele é pra mim

Sempre que ouço uma, lembro da outra. Guardam muitas semelhanças. E são duas joias do cancioneiro popular brasileiro.

Camisa Amarela fala de uma mulher submissa ao marido. O autor não é necessariamente defensor dessa submissão.

Com Açúcar, Com Afeto também fala de uma mulher submissa ao marido. Tal como o Ary de 1939, o Chico de 1967 não está, necessariamente, defendendo essa submissão.

No fim do mês, Chico Buarque vai lançar seu novo disco. O primeiro single está disponível nas plataformas digitais há alguns dias: Tua Cantiga (música de Cristóvão Bastos, letra de Chico). A letra dá voz a um homem casado que ama uma mulher casada.

Tem uma estrofe que diz assim:

Quando teu coração suplicar

Ou quando teu capricho exigir

Largo mulher e filhos

E de joelhos

Vou te seguir

Rapidamente, as redes sociais se encheram de artigos com críticas ao compositor: “machista!”, etc. “Chico não me representa mais!” – alguns resumiram assim.

Ora, é esperado que gente de direita fale mal de Chico Buarque. Mas não que gente de esquerda patrulhe o artista, como está ocorrendo.

É o retrato triste e fiel da falta de bom senso que, nos dois extremos, contamina o debate ideológico e político no atual momento brasileiro.

Chico Buarque tem 73 anos, 51 de carreira (se tomarmos como ponto de partida o seu primeiro disco). Lutou contra a ditadura, sempre foi de esquerda, continua sendo. Querem o quê mais dele?

Tua Cantiga é puro Chico. Não o Chico dos clássicos instantâneos da juventude. Mas aquele das canções refinadas dos últimos 20 e tantos anos. É difícil crer que seus versos suscitem o debate que estamos testemunhando.

Seu cancioneiro está entre o melhor que o Brasil produziu, em todos os tempos, quando o assunto é música popular.

As patrulhas ideológicas marcaram o Brasil de 40 anos atrás.

Não é possível que elas estejam de volta!

Salve o compositor popular!