CULTURA
Dia do Livro Infantil: bisneta de Monteiro Lobato fala da exclusão de termos racistas da obra do escritor
O JORNAL DA PARAÍBA conversou com a bisneta do escritor, Cleo Lobato, para entender o que motivou a readaptação de 'Reinações de Narizinho'. Falou também com Ale Santos, escritor que fez uma releitura de obra de Lobato, em formato de podcast.
Publicado em 18/04/2022 às 13:44 | Atualizado em 18/04/2022 às 15:16
Nesta segunda-feira (18) é celebrado o Dia Nacional do Livro Infantil. A data é uma referência ao nascimento de Monteiro Lobato, considerado o pai da literatura infantil. Nos últimos anos a obra do escritor tem sido alvo de debates por conta da presença de termos considerados racistas. E isso fez com que uma bisneta decidisse adaptar textos de Lobato tirando os trechos preconceituosos.
Cleo Lobato mora no Estados Unidos há 20 anos. Ela estudou História na Universidade de São Paulo (USP) e sempre se interessou por arte e literatura ,"influenciada pelo bisavô", como ela mesma faz questão de pontuar. A mãe de Cleo é filha da filha mais velha de Lobato, e conviveu com o escritor até os 18 anos de idade.
Após a morte do pai, em 2015, Cleo decidiu que precisava manter e preservar o legado de Monteiro Lobato. Conheceu ainda mais a fundo a obra do escritor, admirada desde sua infância, quando teve oportunidade de conviver com artefatos que fizeram parte da vida do bisavô, doados ao Museu do Ipiranga em 2010.
Ela explica que desde cedo imergiu no mundo da leitura, através das histórias que a família sempre a contou. Mas, percebeu que só isso não era o bastante. Era preciso ir mais além, criar um verdadeiro acervo - atual e digital - para que as novas gerações conhecessem as obras de Monteiro Lobato.
Comecei a ver que não se falava mais de Monteiro Lobato na internet, nas escolas… Fiquei preocupada com esse esquecimento e percebi que, quando falavam [de Lobato], era de forma negativa. Tinha muita coisa sobre racismo e Monteiro Lobato na internet. Foi quando decidi montar um site, investir em mídias sociais que pudessem dar conta da obra do meu bisavô”, explica.
O conteúdo publicado por Cleo é verificado tendo como base as obras de Lobato. O site e demais mídias se inspiram nas obras do autor, desde a imagem ao texto. E foi nesse processo de divulgação que ela foi convidada a morar nos Estados Unidos, para apresentar os livros de Lobato aos leitores norte americanos.
O ano de 2020, início da pandemia da Covid-19 e que contou com uma forte onda de protestos contra o racismo no país onde Cleo mora - provocado pelo assassinato de George Floyd, que deu início ao movimento Black Lives Matter, foi a virada de chave para a bisneta de Lobato.
Na época, ela pretendia começar a tradução da obra 'Reinações de Narizinho' e se deparou com o termo 'boa negra', usado por Lobato para se referir a personagem Tia Nastácia. Foi quando decidiu que precisava refletir sobre a questão racial nos livros do bisavô, e adaptá-los ao contexto atual como forma de "justiça racial".
Cleo fala que foi neste momento que começou a perceber a força do movimento contra as obras do bisavô, puxada por debates raciais desde 2015. Apesar do alcance de opiniões contra os livros, a família nunca havia feito nota de repúdio.
Me chocou a quantidade de vezes que Monteiro Lobato se referia a Tia Nastácia pela cor. Hoje a gente não faz mais isso. Foi aí que cheguei onde era o ‘x’ da questão: a justiça racial. Levantei diversas questões, como, o que eram os livros de Lobato há 80 anos atrás? As questões levantadas eram válidas? O livro ainda era estimulante? As pessoas se sentiam ofendidas. E eu precisei refletir sobre", explica.
Os valores éticos "lobateanos" que, segundo ela, foram repassados por sua mãe, a fizeram pensar sobre sobre a importância de se reparar socialmente.
'Reinações de Narizinho'
O livro 'Reinações de Narizinho' é a primeira obra que Cleo Lobato adaptou, lançando em português e também traduzindo para o inglês. Ela decidiu readaptar a obra capítulo por capítulo, com isso já foram lançados os livros 'Narizinho Arrebitado' (2020), 'O Sítio do Pica-pau Amarelo' (2021) e o mais recente 'O casamento de Narizinho' (2022).
Puxei [a história] para o século 21. Fiz uma atualização visual, da personagem. Estamos em 2021, então ela não é escrava, não é analfabeta, teve educação, foi dona de restaurante, e é amiga de infância de Dona Benta, ajudou a criar Narizinho. Mantive o que é não anacrônico e atualizei o que era anacrônico. A personagem não está numa sociedade mais de ex-escravos. Evoluímos, e agora o livro reflete isso”, diz.
Caminhos para a solução
Acho que o caminho não é pelo cancelamento. Lobato tem em suas obras resquícios escravocatas, ele escreve 25 anos após o fim da escravidão, com elementos escravocatas. Mas, há também obras dele que marcaram no contexto antirracista, como denúncias contra abandono a pessoas que deixaram de ser escravas. Então, classificar como racista sem entender o contexto é superficial", diz.
Acho necessário ter sensibilidade em relação aos grupos. Se há condições de rever o posicionamento, é importante que se faça. Mas é importante também continuar existindo os clássicos de Monteiro Lobato. O cancelamento de um personagem tão importante par o Brasil não é a solução", defende.
Nós precisamos enquanto sociedade analisar se temos atitudes pré-concebidas em relação ao outro, e tentar engajar em conversas respeitosas. É importante os pais saberem os que os filhos estão lendo e vendo, e leiam para os seus filhos. A gente aprende sobre racismo, respeito, diálogo em casa", conclui.
Importância do debate
Acho que isso é uma tendência importante. Isso tem a ver sobre atores negros assumindo as posições de discutir o que é uma narrativa hegemônica. Quando a gente abre a obra dele, quando entra em domínio público, todas essas possibilidades se abrem também", explica.O escritor produziu um podcast de ficção científica chamado 'Depois do presidente negro', que retrata um dos livros de Lobato, imaginando uma "vingança" contra o mundo racista. Ele acredita que releituras como essas devem ser feitas para que a obra literária consiga refletir, e promover a reflexão, sobre questões como o racismo.
A narrativa se moderniza porque a sociedade evolui, inclusive em questões técnicas. É uma questão muito natural que releituras sejam feitas", explica.
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