Funk é música ou desmúsica? E o que é desmúsica? Leia a coluna para entender

Funk é música ou desmúsica? E o que é desmúsica? Leia a coluna para entender

Certa vez, li um texto de Sam Cavalcanti no qual ele falava de desmúsica. Uma coisa é música, outra é desmúsica. Gostei do debate levantado por ele, mesmo sem, necessariamente, concordar com seus argumentos.

Pedi que escrevesse um texto para a coluna. Demorou, mas, como ele mesmo me disse, “promessa é dívida”. Aqui está.

DESMÚSICA

Sam Cavalcanti

Em tempos de guerra ou paz, nos é escassa e imprescindível a existência de referenciais. Flui, nos países da América Latina, subterraneamente, uma riqueza incomensurável de Arte e fazeres que a contemporaneidade pós-moderna, tenta, a grande custo, liquefazer: ao achatar toda e qualquer forma de criação humana, procurando igualá-la indistintamente. Em música é urgente que se brade em alto e bom som: nem toda música é Arte! E isso precisa ser esclarecido, sobretudo nos ambientes acadêmicos, pois é lá, seja por fins de estudos, seja por interesses seculares de alimento do mau gosto, onde se nutrem e se perpassam os mais esdrúxulos e maléficos equívocos.
A cultura artística sul-americana precisa de vozes tenazes para que sejam ouvidas em meio a um disseminado discurso preconceituoso de esquecimento do que é Bom, Belo e Justo. Vendem desmúsica como se música fosse, e acima disto, como se esta fosse a autêntica música dos povos abaixo da linha do Equador. O ensino musical carece daqueles que professam Música que alimente a alma! No Brasil, mesmo os bem vocacionados intérpretes do momento ainda são tímidos ao defenderem a Música Artística nossa.
Enquanto jazem esquecidos nomes de suma importância artística, em todas as vertentes da criação, a indústria cultural empurra-nos, goela – ou ouvidos – abaixo, uma infinidade de “produtos” midiáticos que levam multidões ao erro. As massas sucumbem nessa produção sonora feita justamente para achatar e nivelar, sempre por baixo, o consumo, fazendo, assim, com que se crie dependência desses tais produtos sonoros.
Há gêneros em que a depreciação da figura feminina é explícita e mote único para seu existir, e, paradoxalmente, nem todo o movimento de busca por ‘igualdade de gênero’, desde o século passado, tem sido capaz de refrear. O porquê de não existir crítica contundente em abundância, um contraponto suficientemente audível, o acesso à Arte autêntica, e um ensino compromissado com um verdadeiro movimento de mudança repousa em causas mais intrincadas e complexas que estão entranhadas na sociedade pós-moderna, possivelmente, de forma indissociável.
O primeiro aspecto no caso musical é o uso sistemático e reiterado, de forma deliberada, do pulso: o funk, tanto norte-americano como o poderoso subgênero brasileiro, é o exemplo-mor do momento. Nele ouve-se o repicar monótono de pulsos graves, sempre em grande volume; essa extravagância é reforçada pelas letras com rima paupérrima, nas quais se escancara a depreciação não só do feminino, mas, sobretudo, a banalização do sexo.
Que entendamos, quiçá de uma vez por todas: há muito mais que belos rebolados, ou meras lacrações a se escutar: a Vida Interior agradecerá!
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Sam Cavalcanti é compositor e professor musical