Morre aos 69 anos a escritora bell hooks, um dos principais nomes do feminismo negro no mundo

“A autora, professora, crítica e feminista fez sua transição cedo, de casa, rodeada de familiares e amigos”, escreveu a família dela em um comunicado.

Morre bell hooks, um dos principais nomes do feminismo negro.

A morte da escritora estadunidense bell hooks, divulgada por sua família na tarde desta quarta-feira (15), é um lamento coletivo na internet. “A autora, professora, crítica e feminista fez sua transição cedo, de casa, rodeada de familiares e amigos”, escreveu a família dela em um comunicado.

De acordo com a sobrinha, Ebony Motley, bell estava doente e rodeada de amigos e familiares quando morreu. Aos 69 anos, a intelectual e ativista foi um dos grandes nomes do feminismo negro, com 40 livros publicados em 15 idiomas diferentes. 

Nascida em Kentucky, nos Estados Unidos, seu nome de batismo é Gloria Jean Watkins, mas tomou para si o bell hooks em homenagem a sua bisavó, era como se chamava a mulher que foi sua referência ao longo da vida. Esse é um dos motivos para que a escritora assinasse seu nome em letra minúscula, ela acreditava que as maiúsculas deveriam ficar guardadas para a bisa. Além disso, ela dizia que o ‘bell hooks’ era menos gente e mais eu-lírico, tratando o nome como a voz interior que a fazia escrever. 

Ela frequentou escolas segregadas no Condado de Christian, depois foi para a Universidade de Stanford na Califórnia e fez mestrado em inglês na Universidade de Wisconsin. O doutorado em literatura, por sua vez, foi na Universidade da Califórnia em Santa Cruz.

Os livros eram as partículas dos tempos de pesquisa e reflexão dela, e ao longo dos mais de 40 anos de carreira, bell passeou por temas sensíveis como amor, espiritualidade, racismo, feminismo, educação e interseccionalidade. Esse último é um de seus marcos, bell hooks é um dos principais nomes do chamado feminismo interseccional. 

A vertente acredita que a luta pela libertação das mulheres só é possível a partir da compreensão das particularidades de cada uma. Apesar de todas serem atravessadas pelo machismo e pelo patriarcado, a interseccionalidade assume que as vivências de uma mulher negra é totalmente diferente das mulheres brancas, e das indígenas, e das ciganas, e assim por diante. 

As diferenças de gênero, de nacionalidade, de orientação sexual, de classe e de raça são pontos cruciais, segundo bell hooks, para o entendimento das dinâmicas de opressão. 

Morre aos 69 anos a escritora bell hooks, um dos principais nomes do feminismo negro no mundo
Autora tem 40 livros publicados, em 15 idiomas.

As ideias não morrem, é verdade. Não morrem com ela todas as palavras divididas com mulheres que precisavam ler que são capazes. Quantas escritoras entenderam, através de bell, que suas linhas eram potentes demais para ficarem guardadas na gaveta do esquecimento? Sua sensibilidade teria, por si só, impacto subjetivo e individual. Mas bell hooks nasceu para ser em conjunto. 

E foi esse sentimento de comunidade que a fez publicar diversas obras que refletem as condições da população negra e os processos que nos atravessam. Sua obra ‘O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras’, publicada em 2018, é uma das mais lidas nas categorias de raça e gênero de uma das maiores plataformas de venda online do mundo. 

Neste livro, bell hooks apresenta uma cartilha sobre como o movimento feminista não é algo separado do restante da sociedade. Sempre com um olhar à frente, ela torna tangível a noção de que um mundo que ofereça liberdade às mulheres é um mundo de emancipação coletiva. 

Ao Jornal da paraíba, a paraibana Mônica Villaça, socióloga e militante da Marcha da Negritude Unificada da Paraíba, relatou seu sentimento pela perda de bell hooks:

“Ela era uma autora negra do cotidiano. Em todos os seus escritos estão presentes a preocupação com um conhecimento que seja acessível. Sua escrita suave e envolvente permitia que suas e seus leitores compreendessem as tramas do racismo, as implicações da falta de história de nosso povo, e neste emaranhado o lugar assumido pelas mulheres negras, como guardiãs da memória e resistência de nossas comunidades”, desabafa.

O direito de ser amada

Eu quase posso sentir no rosto as lágrimas que escaparam quando li bell hooks pela primeira vez. Era noite, e o silêncio do quarto me empurrava para um sentimento que eu pouco sabia descrever, mas costuma atravessar, corriqueiramente, mulheres como eu: a solidão. Jovem negra, estudante e ávida por entender o que significava ser mulher de cor, procurei em bell hooks respostas menos cortantes do que as que ela se dispôs a dar. 

Não foi em livro, as poucas páginas do ensaio ‘Vivendo de amor’ me apresentou em palavras didáticas a amargura que o racismo guarda para a vida afetiva de mulheres negras. A escritora que hoje, em sua partida, encerrou seu espalhamento de ideias, explicou que o processo de escravização da população negra não tirou apenas direitos socioeconômicos, mas ceifou a parte mais subjetiva que existe em alguém, os afetos. 

A escravidão não era permissiva quanto a constituição familiar de corpos negros. Impedia amores com torturas e prisões. O que isso tinha a ver comigo? Ou com as mulheres negras que hoje vivem, distantes do período escravocrata? Muito. Tanto que senti cada página cortar minha garganta e roubar o ar que restava no meu peito. 

As dificuldades de famílias negras se constituírem nos tempos atuais, as mães pretas espalhadas em solidão com seus filhos no colo, a objetificação dos nossos corpos, a negação da nossa humanidade. O entendimento de que somos para o serviço, e não para o amor. Tudo isso bell hooks ensinou nas linhas do ‘Vivendo de amor’. 

Nos contou a verdade, nos roubou o chão, deu um nome ao abandono que tantas de nós sofremos. No entanto, antes que as páginas chegassem ao fim, ela nos pegou no colo, afirmou que havia como negar a continuidade daquela opressão afetiva. bell hooks escreveu sobre amor como algo possível e de direito para pessoas negras, mas não só. Afirmou que o afeto pode ser revolucionário se cultivado como forma de libertação coletiva. 

Quando uma escritora de si e dos outros se vai, cada linha deixada na mente e no peito de quem fica se desfaz por um momento. Se desfaz na descrença de que não teremos mais páginas, não teremos mais pequenas revoluções diagramadas. Não as dela. “bell hooks não existe mais”, ecoa. Na mesma medida, não foi uma vida que aqui passou sem nada deixar. Ao contrário, de tantos caminhos por bell hooks tocados, pode-se dizer que sua passagem foi um presente inapagável. Que as mulheres por suas linhas atravessadas sigam sonhando, escrevendo, amando e sendo amadas, na continuidade de uma libertação que não acaba.