Análise: as consequências jurídico-eleitorais da rejeição de contas do chefe do Poder Executivo

O advogado eleitoralista Victor Barreto destaca que sem a rejeição das contas pelo Poder Legislativo, mesmo com reprovação pelo TCE, não há inelegibilidade de chefe (ou ex) do Poder Executivo.

Em ano de eleição, a inelegibilidade de candidatos é um tema sempre presente. Não faltam debates entre eleitores, na imprensa ou nos círculos jurídicos a respeito das possibilidades de rejeição, pela justiça eleitoral, ao pedido de registro de candidatura de muitos daqueles que pretendem se lançar à disputa de votos.

Com a Lei Complementar nº 135/2010 (Lei da Ficha Limpa), que tem origem e forte apelo popular, ampliando e endurecendo as causas de inelegibilidades estabelecidas pela Lei Complementar nº 64/1990 – que impedem o cidadão de se candidatar a cargo público –, esse assunto ganhou ainda mais relevância.

Situações jurídicas 

Dentre as situações jurídicas que tornam o cidadão inelegível, a prevista no art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar nº 64/1990, destaca-se por sua complexidade, ocasionando muitas dúvidas entre os eleitores.

O referido dispositivo legal considera inelegíveis, para qualquer cargo, “os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição”.

A presença dos requisitos 

São necessários, portanto, para a configuração da referida causa de inelegibilidade, a presença dos seguintes requisitos cumulativos:

a) exercício de cargo ou função pública;
b) rejeição das contas pelo órgão competente;
c) insanabilidade da irregularidade apurada;
d) ato doloso de improbidade administrativa;
e) irrecorribilidade do pronunciamento de desaprovação das contas;
f) inexistência de suspensão ou anulação judicial do aresto de rejeição das contas [1].

No que se refere ao órgão competente para a rejeição das contas do agente público, um aspecto importante a ser observado é o papel exercido pelos Tribunais de Contas, que possuem, entre as suas atribuições, conforme o art. 71 da Constituição Federal, (I) apreciar as contas prestadas anualmente pelo chefe do Poder Executivo, mediante parecer prévio; e (II) julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos, bem como daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário.

O papel opinativo do TCE

Nota-se, assim, que, quando se trata das contas anuais de prefeitos, governadores e do Presidente da República, os Tribunais de Contas exercem um papel opinativo, mediante parecer prévio, a ser apreciado pelo Poder Legislativo do ente federativo respectivo, que possui a intransferível prerrogativa constitucional de julgar tais contas [2].

Ou seja, sem a rejeição das contas pelo Poder Legislativo, não há inelegibilidade de chefe do Poder Executivo com base no art. 1º, I, g, da Lei de Inelegibilidades [3].

Por outro lado, a análise das contas dos demais gestores públicos pelos tribunais de contas se dá em caráter decisório e não precisam passar pelas casas legislativas.

Irregularidades insanáveis

Para que o chefe de Poder Executivo se torne inelegível por rejeição de contas, além de pronunciamento desfavorável do parlamento correspondente, que não tenha sido suspenso ou anulado, e para o qual não caiba recurso, é necessário ainda que tais contas tenham sido reprovadas por irregularidades consideradas insanáveis e que configurem ato doloso de improbidade administrativa.

Embora não haja uma definição na legislação eleitoral para “irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa”, o que acarreta um significativo grau de subjetividade na análise, a doutrina apresenta conceitos para o termo e as decisões dos tribunais eleitorais possibilitam a aferição de condutas assim consideradas.

Os entendimentos

José Jairo Gomes [4], por exemplo, define como insanáveis “as irregularidades graves, decorrentes de condutas perpetradas com dolo ou má-fé, contrárias à lei ou ao interesse público”, que podem causar “dano ou prejuízo ao erário, enriquecimento ilícito, ou ferir princípios constitucionais reitores da Administração Pública”.

O TSE, por sua vez, já considerou como irregularidade insanável que configura ato doloso de improbidade administrativa em contas rejeitadas, entre outras, as seguintes condutas: inobservância à Lei de Responsabilidade Fiscal [5]; descumprimento da Lei de Licitações [6], embora haja exceções [7], a exemplo da condenação por vícios formais que não comprometem o erário e não constituem ato de improbidade administrativa; o não pagamento de precatórios quando há disponibilidade financeira [8]; e a não aplicação do mínimo constitucional na educação [9], com exceções, como a verificação de ausência de dolo e de aplicação do percentual mínimo nos anos seguintes [10].

Lei de Inelegibilidades

Desse modo, não basta que haja reprovação de contas por órgão competente para que o chefe do Poder Executivo seja considerado inelegível por oito anos, a partir da data da publicação da decisão de rejeição; é necessário que estejam presentes todos os requisitos previstos no art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei de Inelegibilidades, avaliação que cabe sempre à justiça eleitoral, caso a caso, após à solicitação do registro de candidatura.

Notas:

[1] TSE, Respe nº 060042774, Relator Min. Edson Fachin, DJE 30/09/2021, dentre outros precedentes.

[2] STF, Medida Cautelar na Reclamação nº 10.445/CE, Relator: Min. Celso de Mello, DJE de 09/09/2010.

[3] Esse entendimento não abrange as contas relativas a convênios com repasse de recursos de diferentes entes federativos, em respeito ao princípio federativo e à autonomia dos entes consorciados (TSE, Ac. REspe nº 17751, rel. Min. Luciana Lóssio). Nesses casos, o pronunciamento do Tribunal de Contas competente possui caráter decisório.

[4] GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 16 ed. São Paulo: Atlas, 2020.

[5] A exemplo da Ac. de 14.2.2013 no AgR-REspe nº 17652, rel. Min. Dias Toffoli.

[6] Ac. de 18.12.2008 no AgR-REspe nº 32.937, rel. Min. Joaquim Barbosa; Ac. de 20.11.2014 no AgR-REspe nº 92555, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura; entre outras.

[7] Entre outras decisões, Ac. de 30.9.2014 no RO nº 28812, rel. Min. Gilmar Mendes.

[8] Ac. de 11.9.2008 no REspe nº 29.563, rel. Min. Marcelo Ribeiro.

[9] Ac. de 11.11.2014 no AgR-RO nº 178285, rel. Min. Luiz Fux.

[10] Ac de 29.6.2017 no REspe 29860, rel. Min. Henrique Neves.