QUAL A BOA?
Pieces of a Woman: a arte também possui o potencial de transformar angústia em beleza
Publicado em 14/01/2021 às 6:38 | Atualizado em 22/06/2023 às 12:51
Luísa Gadelha, que geralmente escreve sobre literatura, hoje vai de cinema. Ela comenta o filme Pieces of a Woman.
VIRADOS DE LADO, MUROS SÃO PONTES
Luísa Gadelha
Nestes tempos confusos em que ditamos receitas e modelos de vida, especialmente às mulheres, sobre como exercer a maternidade e como lidar com perdas, dois temas delicadíssimos, o filme Pieces of a Woman, que estreou na Netflix há uma semana, surpreende pela provocação do exercício de alteridade no telespectador. Não sou mãe, nunca gestei e, no entanto, me pôr no lugar de Martha, a protagonista que perde sua bebê e vive um profundo luto, foi uma experiência sutil e dolorosa – a arte também possui o potencial de transformar angústia em beleza.
Os primeiros trinta minutos de Pieces of a Woman apresentam um parto domiciliar, em plano sequência, chocante, de tirar o fôlego, com os pais e a parteira transbordando tensão. Atuações (Vanessa Kirby e Shia Labeouf), trilha sonora, direção (Kornél Mundruczó) e produção (de Scorsese) maravilhosas à parte, prefiro me ater aos detalhes silenciosos do filme, que muito me chamaram a atenção: a ponte em construção que aparece como marcação dos meses, a lenta passagem do inverno, a câmera que se move pelos personagens como um observador indiscreto, as plantas que murcham conforme a vida deles desmorona, expressões e espaços vazios que preenchem a tela.
Em plano de fundo, um recado, inicialmente discreto, se torna explícito à medida que o filme avança: a justiça penal e o processo que a família, com seus conflitos e diferentes maneiras de vivenciar a morte, promove contra a parteira, não garantem nenhuma recompensa à perda sofrida.
O que melhor simboliza a superação do luto me parece perfeitamente metaforizado pela construção da ponte e suas engrenagens, enfim completada no final do filme: os pedaços da mãe-mulher são recompostos através desse sólido alicerce que conecta duas margens. E, então, me vem à cabeça Angela Davis quando diz que, virados de lado, muros são pontes: não mais isolam, mas interligam seres humanos com suas dores particulares.
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Luísa Gadelha é graduada em Letras, mestra em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba e doutoranda em Estudos Literários e Feministas pela Universidade do Porto. Servidora da UFPB, também escreve sobre literatura e é editora do site de poesia Zona da palavra. Tem poemas publicados em revistas brasileiras e portuguesas.
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