QUAL A BOA?
RETRO2020/1917 faz uso eficaz do plano-sequência
Publicado em 28/12/2020 às 13:57 | Atualizado em 22/06/2023 às 12:51
Há um belo plano-sequência em A Marca da Maldade, que Orson Welles realizou em 1958.
Há outro - magnífico! - no desfecho de Passageiro, Profissão: Repórter (1975), de Michelangelo Antonioni.
Robert Altman lançou mão do recurso em O Jogador, de 1992.
Se pensarmos em filmes recentes, temos o da abertura de Gravidade (2013), de Alfonso Cuarón.
Sim, mas são todos planos-sequência que duram alguns minutos (mesmo que longos minutos, como em Gravidade).
Nenhum deles se compara a uma experiência radical que já tem mais de 70 anos. Refiro-me a Festim Diabólico, de Alfred Hitchcock.
O filme, de 1948, não tem um plano-sequência. O filme é um plano-sequência.
Ou, para sermos bem precisos: é a simulação de um único plano-sequência.
Como não havia rolos de película virgem equivalentes à metragem do filme, Hitchcock usou fade várias vezes para fazer os cortes sem tirar do espectador a sensação de que ele está diante de um plano-sequência que se estende por 81 minutos.
1917 remete a Festim Diabólico.
A comparação de um com o outro é inevitável.
O filme de Sam Mendes também é a simulação de um longo plano-sequência em seus 119 minutos de duração.
Filmes assim exigem muito dos atores, obrigados a ensaiar à exaustão longas cenas, e da equipe responsável pela fotografia.
Correm o risco de se transformar no triunfo da forma sobre o conteúdo.
Não é o caso exatamente de 1917.
Ao menos para o espectador mediano, a história de dois homens do exército britânico a quem, durante a Primeira Guerra Mundial, é confiada uma missão quase impossível é suficientemente atraente e bem contada para sucumbir a um "truque", um formato menos usual de montagem que na verdade ilude a plateia.
É fato, porém, que a parcela do público que gosta mais de cinema do que de filmes (será que me faço entender?) verá 1917 sem esquecer que está diante da simulação de um interminável plano-sequência e com a propensão a sobrepor a forma ao fundo.
O espectador que tem esse perfil não quer perder os momentos em que, num fade, existe um corte e tudo começa de novo. Provavelmente, estará mais atento a isto do que ao próprio desenrolar da história.
1917 é como um game? Há quem diga que sim.
Não vejo deste modo.
Se quisermos, Sam Mendes atualiza Alfred Hitchcock, adequando a experiência do velho mestre ao cinema que se faz atualmente.
Seu filme tem muito mais virtudes do que defeitos.
Comentários