Quase uma década após a epidemia do vírus zika na Paraíba, muitos bebês que nasceram com microcefalia continuam enfrentando os desafios impostos pela condição. Na época, as perspectivas eram difíceis, com a expectativa de vida limitada e muitas incertezas sobre o futuro dessas crianças. Só que, com o passar dos anos, cada uma delas, agora em diferentes estágios de crescimento, têm mostrado que é possível sim ter uma certa qualidade de vida, quando as famílias têm acesso aos serviços de saúde necessários para isso. O Núcleo de Dados da Rede Paraíba resgatou os números passados e revisitou histórias de crianças que seguem contrariando a ciência.
Edvânia Maria, de 26 anos, e Mariana Montenegro, de 37, são duas mães paraibanas que não se conhecem e que vivem realidades sociais e geográficas diferentes. Uma mora em João Pessoa, a outra, em Santa Rita. Mas, há algo que as une: os desafios enfrentados desde o nascimento dos primeiros filhos. Gestações que, apesar de planejadas, geraram surpresas.
Foi aos 4 meses de gravidez, através de um ultrassom, que Mariana descobriu uma malformação congênita no bebê. O diagnóstico veio pouco depois: microcefalia.
“A gestação até um certo ponto foi tranquila. Nas ultrassons, quando a gente estava fazendo, com sete meses, o médico que tava atendendo a gente falou que o período encefálico dela não estava evoluindo. A gente pensava que era alguma coisa genética. Nalu nasceu com os nove meses, foi parto cesária”, conta Mariana Montenegro, empresária, mãe de Nalu.
Para cuidar da criança, Mariana conta com uma rede de apoio de familiares, enfermeiras para as atividades diárias de fisioterapia e fonoaudiologia, terapias e plano de saúde. Facilitadores, sim, mas que não diminuem uma luta árdua que começou há nove anos, idade da pequena Nalu.
“Eu aprendi a viver um dia de cada vez. Enquanto a gente tiver vivo, a gente tenta dar o nosso melhor para a qualidade de vida dela, para que ela fique cada dia mais independente. Não é fácil. É muito difícil. Mudou totalmente a minha rotina, eu tinha uma vida profissional, eu tive que deixar um pouquinho de lado, mas aí eu costumo dizer que conheci outro mundo, o mundo atípico. É um mundo que a gente entrou e que hoje eu vejo que é era pra ser assim. Principalmente pra essas famílias que não tem recurso é muito complicado, é muito difícil, porque assim é uma luta diária e a maioria também dessas famílias e as mães são sozinhas, não tem essa rede de apoio”, desabafa Mariana Montenegro.
Assim como Mariana, que precisou deixar de lado a profissão na área da administração, Edvânia também abriu mão de muitos objetivos para cuidar do filho Edson, de oito anos. O principal deles foi a escola: largou o ensino médio assim que a criança nasceu. Inclusive, foi somente no nascimento que ela descobriu a condição de saúde de Edson: mais um caso de microcefalia.
“Eu desejei muito engravidar e também eu tinha muita vontade de ser mãe de menino. Engravidei, foi uma gestação tranquila, tive ele com 38 semanas, no parto normal. Quando eu tive ele que suspeitaram da microcefalia. Aí encaminharam a gente não tem para a Cândida Vargas, a gente conheceu a doutora Juliana Soares e ela que deu o diagnóstico. E começou a acompanhar ele até uns três anos de idade. A gestação foi perfeitamente normal, eu não tive nenhum sintomas de nada. Foi tudo normal, os exames tudo normal, ultrassom normal. Eu fui surpreendida”, revela Edvânia Maria da Silva, dona de casa e mãe de Edson.
Descoberta da doença foi feita por médica paraibana
Entre os anos de 2015 e 2017, uma epidemia de casos de microcefalia, relacionada à infecção, durante a gravidez, pelo zika vírus, assustou o país e, principalmente, diversas gestantes. Foi o começo de uma luta por respostas, por direitos e por um futuro digno para crianças que já nasceram desafiando todas as expectativas.
Em 2015, o governo da Paraíba decretou emergência devido à incidência, considerada anormal dos casos de microcefalia no estado. No país, entre 2010 e 2019, 6.267 casos de microcefalia ao nascimento foram registrados no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos.
Na Paraíba, os casos de microcefalia causados pelo vírus zika, constam dados mais reduzidos: números que variam de 30, 25, 2 e 12 casos, entre os anos de 2015 e 2018. As informações foram solicitadas pelo Núcleo de Dados da Rede Paraíba de Comunicação, via Lei de Acesso à Informação.
Foi a médica e pesquisadora paraibana Adriana Melo que fez história ao descobrir a relação entre o vírus zika e a microcefalia. Em meio a uma crise de saúde pública, Adriana foi a primeira a descrever a doença “zika congênita”, que elevou o número de crianças brasileiras que nasceram com malformações no cérebro.
“O primeiro sinal foi uma paciente minha, Conceição, em uma clínica privada, e observei que o cérebro do bebê estava pequeno, apesar do tamanho da cabeça ainda estar normal. E tinha uma alteração do cerebelo, que é uma estrutura que fica atrás da cabeça, na parte por trás do cérebro. Pedi para ela voltar em três semanas e em três semanas tinha aparecido a microcefalia. Ou seja, a cabeça tinha diminuído a velocidade de crescimento e também tinha aparecido calcificações. E aí ficou meio confuso porque a alteração do cerebelo era típica de uma doença genética, mas as alterações de calcificação eram típicas de infecção. As duas juntas não fechava nenhum diagnóstico que a gente já sabia na medicina”, conta a médica Adriana Melo.
Desafios continuam na rotina de mães e filhos
Edvânia e Mariana entraram nas estatísticas. Foram dois diagnósticos confirmados do vírus zika. Infecções que atingiram diretamente o feto. Grávida, Mariana se viu com manchas vermelhas na pele, dores no corpo e febre alta. Sintomas que facilmente se confundiam com os da dengue. Já Edvânia não sentiu nada: foi um caso assintomático, só descoberto depois, quando Edson já havia nascido. Na época, tudo era muito novo. Diagnósticos confusos, em um mundo que não estava preparado para receber esses meninos e meninas.
E é assim que, nas trajetórias dessas mães, que representam tantas outras, estão duas crianças, uma condição clínica e, aos olhos da medicina, um destino: expectativa de vida de até cinco anos de idade.
“Quando eu recebi o diagnóstico mesmo da doutora eu fiquei assim sem reação. Veio aquele momento de desespero, que a gente chora muito, mas depois eu disse 'tenho que me levantar porque o meu filho vai depender de mim daqui para frente'. E com seis meses a gente deu início às terapias. Até agora, é uma rotina de terapias a semana toda. Eu ouvi muito falar que essas crianças só chegariam até 5 anos de idade. E chegamos até aqui. Ele vai fazer nove anos. Não foi uma trajetória fácil, nem para mim nem para as mães que tem. Foi uma trajetória muito desafiadora. Porque, no caminho, teve muitos preconceitos eram muitas perguntas desnecessárias”, conta Edvânia.
“Ele [o médico] ainda falou da possibilidade da questão do aborto. Era uma coisa que a gente nem cogitou a possibilidade. Depois a gente não voltou mais para esse médico e a gente continuou com as ultrassons com outros médicos, até porque eu acredito que, para Deus, nada é impossível, e você jamais pode tirar a esperança do pai e da mãe e a gente deu continuidade na gestação”, Mariana detalha.
Mas, o tempo passou. Só que, mesmo após quase dez anos do boom de casos na Paraíba, e a microcefalia ainda desafia a medicina. Na Paraíba, apesar da queda considerável, ainda há casos sendo registrados. No Instituto Cândida Vargas, em João Pessoa, muitas mães ainda levam os filhos, até os dois anos de idade, para receber suporte de terapia ocupacional, neuro, pediatra, fono, serviços oferecidos por meio de uma rede de monitoramento que existe desde 2012, para atendimento e encaminhamento de crianças em situações especiais.
“A gente precisa colher de forma integral essa criança e essa mãe e ensinar ela a cuidar”, explica Juliana Soares, coordenadora da Rede Cuidar.
Mas para muitas mães, ainda falta. Falta o básico para oferecer aos filhos com microcefalia qualidade de vida, diante de um diagnóstico que não tem cura. Edvânia depende do transporte da prefeitura para se deslocar até os serviços de saúde, em João Pessoa ou Campina Grande. O estado oferece esses atendimentos, a maioria deles, na Funad. Muitas vezes, há filas de espera para tratamentos que não podem aguardar. E, agora, há um novo medo: as mães reclamam que a rede pública tem sinalizado alta para as crianças, por volta dos oito anos de idade.
Em entrevista ao videocast Saúde Alerta, com o médico André Teles, a médica Adriana Melo reflete sobre o assunto. “Os nossos centros de reabilitação, eles dão alta para crianças que não têm a capacidade de andar, capacidade motora, eles não têm capacidade. Você nega essa criança a qualidade de vida”, diz.
Juliana Soares, da Rede Cuidar, reforçar a importância dos tratamentos a essas crianças. “Eles precisam de um centro de reabilitação para o resto da vida, precisam ser acompanhados pro resto da vida. E precisam ter pessoas habilitadas para fazer esse tratamento junto com a família para o resto da vida. Quem fortalece isso, muito, são as Associação de Mães. É direito da criança ter o fluxo de acompanhamento para o resto da vida. Tem momentos que elas precisam de cirurgias ortopédicas. Não dá para dar alta a essas crianças, essas crianças não podem receber alta”, diz.
O acompanhamento multiprofissional faz toda a diferença em qualquer fase da vida dessas crianças que, um dia, serão adultos. É o que desejam essas mães, que vibram com cada sinal de evolução dos filhos. Uma rotina de dedicação integral, onde ter rede de apoio é exceção.
Movidas pelos sorrisos das crianças, elas garantem não se arrepender de nada. Se o futuro é incerto, essa é mais uma razão para celebrar o presente. É o amor que ilumina o caminho, entre dificuldades e conquistas.
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