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CULTURA

Som no quintal da velha índia

Maria Bethânia canta o homem no Brasil no disco 'Meus Quintais'; cantor Chico César influenciou o novo trabalho da baiana. 

Publicado em 13/06/2014 às 6:00 | Atualizado em 30/01/2024 às 14:29

Em meio ao Festival de Artes de Areia do ano passado, Chico César recebeu uma ligação. Era Maria Bethânia, que queria ouvir do paraibano sugestões para seu próximo disco. Na ligação, que durou um bom tempo, Chico e Bethânia trocaram ideias, ele cantarolou algumas composições - umas prontas, outras em andamento - e daí nasceu o mote para Meus Quintais (Biscoito Fino, R$ 30,00), 51º disco da baiana que acaba de chegar às lojas.

Bethânia nem queria lançar um novo álbum – preferia soltar um disco inédito só em 2015, quando completa 50 anos de carreira.

Mas entre um show e outro da turnê Carta de Amor, a vontade surgiu, e ela tinha a ver com cantar o homem no Brasil, o caboclo, o índio, o dono da terra.

“Isso foi o que me impulsionou e era algo tão intuitivo, e que insistia tanto, que eu fiquei preocupada. Eu liguei para Chico César (...) e disse: Chico, tô pensando nisso! E ele disse: ‘Eu quero pensar junto’, e começou a cantar umas cantigas de índios lá da Paraíba, lindas”, contou a cantora, em entrevista coletiva.

Velhos amigos, Bethânia e Chico se conheceram no estúdio Mosh, em São Paulo, quando ela estava gravando Âmbar e ele, Cuscuz Clã (ambos lançados em 1996). A identificação entre os dois foi instantânea, a ponto de Bethânia, naquele disco, incluir duas músicas do paraibano, 'Onde está o meu amor' e 'Invocação'. De lá para cá, a cantora baiana já gravou quase uma dezena de composições de Chico César.

Para o novo projeto, Chico enviou algumas músicas para Bethânia, todas inéditas. No meio havia ‘Nação Tabajara’, que ele fez depois de visitar a aldeia, no Conde, e já estava pronta antes mesmo de Bethânia sonhar com o novo disco, mas a cantora recusou. Acabou gravando duas: ‘Xavante’ e ‘Arco da velha índia’.

‘Xavante’ é a visão do músico paraibano sobre os índios do Sul do país. “O Brasil é índio de ponta a ponta, mas quando a gente pensa em índio, olha só do Centro-Oeste para cima”, comenta o autor da canção.

Já ‘Arco da velha índia’ surgiu depois daquela conversa entre os dois. “Depois de conversar com ela, eu fiquei com a impressão que Bethânia queria lançar uma flecha, que ela estava armando o seu arco, o arco da velha índia. Pensei: o que é que vem quando esse arco se distender? Que flecha é essa? Qual é a mensagem?”, reflete Chico César.

“O índio não sai da minha cabeça”, pontuou Bethânia. “Falar neles, e pensar neles me interessa sempre. Eu acho o índio o dono da terra. Eu sou parda, sou misturada. Mas eles são inteirinhos. Eles são o chão. São o Brasil”, completou a cantora, que queria dedicar a canção a Rita Lee.

“(‘Arco da velha índia’) tem um dos versos mais bonitos que alguém já me dedicou: ‘É corda vocal insubmissa’. Isso é muito grande pra mim. E quando o Chico me deu, eu fiquei muito feliz, muito contente. Em seguida, liguei para ele e disse: ‘Posso dedicar a Rita Lee?’ Ele disse: ‘Eu a fiz pra você, é sua agora.

Você faz o que você quiser com ela’. Eu acho Rita com a sabedoria da velha índia e acho lindo ela ter o cabelo vermelho”.

O NOVO TRABALHO NÃO TEM RELAÇÃO COM BRASILEIRINHO (2003)

“Brasileirinho é o Brasil, o quintal é o meu. O Brasileirinho era o povo brasileiro, o sentimento brasileiro, bem diferente. Aqui é uma coisa individual. Outra praia”, contesta Bethânia.

O disco traz, no total, 13 faixas. São músicas desse universo particular de Bethânia, esse quintal dela onde frequentam, além de Chico César, Tom Jobim, Zé do Norte, Dori Caymmi, Roque Ferreira, Adriana Calcanhotto, Paulo Vanzolini, entre outros.

Essa viagem começa com ‘Alguma voz’, parceria entre Dori e Paulo César Pinheiro que ganhou o elegante piano de André Mehmari, e termina no riacho do sítio de Jobim com ‘Dindi’, parceria com Aloysio de Oliveira, também arranjada com piano, dessa vez o de Wagner Tiso.

No meio do caminho, Bethânia encontra quatro vezes o conterrâneo Roque Ferreira, de quem gravou ‘Casa de caboclo’ (parceria com Paulo Dafilim), ‘Candeeiro velho’ (dele e Paulo César Pinheiro), ‘Imbelezô eu/Vento de lá’ e ‘Folia de reis’. Só os títulos das músicas já dão uma bela ideia do que há em Meus Quintais.

Vanzolini, famoso por ter composto 'Ronda', é o autor de ‘Moda da onça’, canção obscura, gravada nos anos 60 por Inezita Barroso e que chegou a Bethânia, em seu registro original, através de professores e estudantes de História da UFMG.

DURANTE A COLETIVA, BETHÂNIA SE REFERE A ELA MESMA COMO ONÇA

Das suas memórias mais antigas, ela resgata ‘Lua bonita’, parceria de outro paraibano, Zé do Norte, com Zé Martins e regravada por Raul Seixas, gravação que inspiraria a versão da cantora que está no disco. Já ‘Povos do Brasil’ ela pinçou do sambista carioca Leandro Fregonesi, nome que desponta na nova geração e já foi gravado por Beth Carvalho.

Coube a Adriana Calcanhotto, compositora urbana e sofisticada, nas palavras de Bethânia, aceitar o “convite para ir para o mato, acompanhar os índios”. A gaúcha, então, mergulhou no mito da bela sereia que vive no Amazonas e saiu de lá com ‘Uma Iara’, que Bethânia aproveitou para emendar com um texto de uma de suas autoras favoritas: Clarice Lispector.

Quase todas as canções do repertório, Bethânia nunca tinha gravado (incluindo ‘Dindin’, que chegou a cantar em um show de Vanessa da Mata). A única regravação é ‘Mãe Maria’, de Custódio Mesquita e David Nasser, que ela registrou primeiro em Pássaro Proibido (1976).

De beleza rústica, Meus Quintais é ilustrado com imagens desse universo afetivo de Bethânia, resumido na bela foto dela com a mãe, Dona Canô, nas páginas centrais do encarte. Uma imagem que vale mais do que mil canções.

Imagem

Jornal da Paraíba

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