COTIDIANO
Milton Nascimento, um mistério que não se desvenda por completo
Publicado em 26/10/2016 às 7:30 | Atualizado em 31/08/2021 às 7:45
Recife, março de 1979. Teatro do Parque lotado. Milton Nascimento entra sozinho no palco, vestido de branco, e, acompanhando-se ao violão, canta “Volver a los 17”, de Violeta Parra, que gravara com Mercedes Sosa.
Em seguida, os músicos vão ocupando seus lugares. Wagner Tiso no piano, Robertinho Silva na bateria, Novelli no baixo, Hélio Delmiro na guitarra. Mais Beto Guedes e Flávio Venturini.
O show: “Clube da Esquina 2”. Histórico, antológico, inesquecível. “Canoa, canoa desce/no leito do Rio Araguaia desce” – a voz de Milton ecoa no teatro com os falsetes que encantaram o mundo. Lembranças da primeira vez em que o vi de perto.
Milton Nascimento entrara na nossa casa pelas mãos do meu pai, em 1967. No festival que o revelou com “Travessia”. “Solto a voz nas estradas...” – a voz mágica que vinha de Minas. Como um mistério que nunca desvendaríamos por completo. O rapaz nascido no Rio, adotado por um casal de mineiros, louco pelo François Truffaut de “Jules et Jim”. E pelos mesmos Beatles que vi correndo na quadra em “A Hard Day’s Night”.
Meus melhores contatos com a música de Milton Nascimento são dos anos 1970, o período em que gravou seus discos mais importantes. Sete discos que o colocaram no topo da nossa música popular, entre 1970 e 1978.
Já estava tudo ali, naqueles trabalhos realizados ao lado dos músicos que formaram o Clube da Esquina. Gente que veio de Minas. Gente que foi se agrupando mais tarde no Rio. “Noite chegou outra vez/de novo na esquina os homens estão” – Milton e os irmãos Borges, seus parceiros. Milton e Brant – seu principal parceiro de jornada.
Primeiro, o disco com o Som Imaginário. “Para Lennon e McCartney”, “Canto Latino”, “Pai Grande”. “A Felicidade”, de Tom e Vinícius, evocando Agostinho dos Santos. Depois, “Clube da Esquina”. Brancos e pretos. Lô e Milton. “Tudo o que Você Podia Ser”, “O Trem Azul”, “Cais”, “Nada Será Como Antes”, “San Vicente”.
E aí vem “Milagre dos Peixes”. Em estúdio, com as letras censuradas e a voz de Clementina de Jesus. Ao vivo, no Teatro Municipal de São Paulo, regência de Paulo Moura. As cordas que remetem ao barroco mineiro antecedem as palavras que se repetem em “Bodas”. “E a muitos outros que a mão de Deus levou” – a dedicatória irônica na noite brasileira.
“Minas” e “Geraes” consolidam o artista extraordinário. “Fé Cega, Faca Amolada”, “Saudade dos Aviões da Panair”, “Ponta de Areia”. A voz metálica misturada ao coro infantil. “Mi” de Milton, “nas” de Nascimento. As sílabas iniciais formando “Minas”. Para abrir caminho a “Geraes”, o disco seguinte. “Voltar aos dezessete, depois de viver um século” – os versos de Violeta Parra gravados com Mercedes Sosa. Ou “quem cala sobre teu corpo/consente na tua morte”.
No próximo passo, os amigos juntos em “Clube da Esquina 2”. Elis, Chico, todos. Há muita beleza nos anos seguintes. Mas nem precisava. Bituca é o aniversariante desta quarta-feira (26).
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