SAÚDE
No BBB e fora dele: o risco da pressão estética que leva aos transtornos alimentares
Reality show tem provocado discussões na internet sobre a relação de participantes com a comida. Aqui fora especialistas alertam para cuidados com possíveis distúrbios.
Publicado em 06/02/2022 às 9:05 | Atualizado em 07/02/2022 às 14:43
Poucos ovos e alguns tipos de fruta, esses são, por vezes, os alimentos ingeridos durante um dia inteiro pela participante Bárbara, do Big Brother Brasil 2022. A jovem ainda passa muitas horas sem comer, e diz que sente dor quando come. A alimentação restrita tem sido comentada dentro e fora do programa, e alguns especialistas indicam que o comportamento da modelo apresenta indícios de um possível transtorno alimentar.
Bárbara nunca citou nenhum tipo de diagnóstico, mas isso não impede que os telespectadores apontem situações desconfortáveis de serem assistidas por quem já viveu algum tipo de distúrbio. Os transtornos alimentares são, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), disfunções de saúde mental que afetam o comportamento de uma pessoa em relação aos hábitos alimentares.
Entre eles, os mais conhecidos tendem a ser relacionados a processos de emagrecimento, como a anorexia e a bulimia, além da compulsão alimentar. De acordo com a psicóloga Rayanne Carlos, os transtornos podem ser ocasionados por diversos fatores.
“As causas estão relacionadas com um somatório de questões biológicas, psíquicas, sociais, familiares e ambientais.Os adolescentes são os mais afetados. Os meninos são minoria e apresentam preocupação em ter um corpo com maior definição muscular. As meninas ficam insatisfeitas por desejarem serem mais magras, e essa insatisfação com a aparência pode influenciar no desenvolvimento de uma imagem negativa e distorcida do próprio corpo”, explica a especialista.
Entre os diversos fatores que podem influenciar o desenvolvimento de doenças que causam uma má relação com a comida, a manutenção de um padrão de beleza costuma despontar entre os principais. Rayanne Carlos acredita que, para as mulheres, a aparência é posta como ponto central desde a infância, e que isso molda a relação consigo.
“A beleza é vista desde de cedo como uma “qualidade”, principalmente pelas meninas. Mesmo quando ainda é um bebê, há grande investimento nas roupas e acessórios. No decorrer do crescimento, outras demandas vão surgindo e aos poucos essa menina é exposta aos padrões, e o que é esperado dela. Tanto no que diz respeito ao seu comportamento, quanto à sua aparência e as formas de alcançar o padrão, caso ela não esteja nele”, relata a psicóloga.
Essa busca por um padrão que, na maioria das vezes, é inalcançável, é forjada por questões de consumo, contexto cultural e aspectos estruturais como o machismo. As mulheres são mais atravessadas por essas questões porque, historicamente, elas foram separadas de aspectos como força e intelectualidade. Restando a cobrança pela beleza, essa que pode agir como uma ferramenta de manutenção do controle.
Quem traça análises relacionadas a de que forma a exigência por um padrão exacerbado de beleza se conecta às questões sociais é a pesquisadora Jayane Sousa, que trabalha na linha de comunicação, construção de identidade e corporalidade. Segundo ela, os corpos são fluídos, bem como a concepção de beleza e padrão. Com variáveis como tempo e lugar, o que é tido como belo é relativo. Desse modo, o padrão do corpo feminino é alterado com o passar do tempo.
“O corpo padrão da década de 60 era curvilíneo, depois passou a ser aquele que exaltava a magreza no seu extremo, hoje em dia é o corpo que está apto a receber procedimentos estéticos, ou seja, aqueles que se submetem a cirurgias de silicone, lipoaspiração e botox para uma aparência sempre jovens e malhados”, contextualiza a pesquisadora.
Esse recorte está submetido a uma análise do contexto brasileiro, visto que a beleza pode variar, ainda, de acordo com o lugar onde o indivíduo está inserido. Os padrões estabelecidos no ocidente possuem semelhanças e diferenças entre si, mas estão ainda mais distantes do que é tido como belo em países orientais. São essas variáveis que levam os especialistas a conclusão de que o padrão é inalcançável. Se muda conforme tempo, conforme local, conforme até as experiências de socialização de cada pessoa, como pode ser exigido de forma ditatorial?
Indústria da beleza e transtornos alimentares
O Brasil é o país que mais realiza procedimentos estéticos no mundo. Com cerca de 1.5 milhões de cirurgias ao ano, o país ultrapassa os Estados Unidos e o México. Os números constam em levantamentos da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS) e Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP). No entanto, a indústria da beleza está além das cirurgias.
De acordo com a Forbes, o Brasil é o quarto maior mercado de beleza e cuidados pessoais do mundo. Os dados atestam uma alta procura por serviços e produtos relacionados à estética. Para a pesquisadora Jayane Sousa, é esse lucro dos setores de vendas que inflama a escalada e manutenção dos padrões de beleza, principalmente nas redes sociais.
“Esse padrão estético pré-estabelecido influencia na vida em sociedade a partir do momento em que ele é utilizado como moeda de troca. Eu pago pela beleza. Ou seja, não existe possibilidade de ser bonita se não houver condições de arcar com os custos que ela tem. É aí que está o perigo, o comércio lucra com a baixa autoestima, com o ódio e repulsa ao próprio corpo. Ele vende a felicidade em forma de consumo”, pondera a especialista.
Além de inalcançável, o padrão se torna inacessível para grande parte das mulheres. Na falta de recursos que garantem uma conquista, ainda que momentânea, satisfatória, os transtornos se tornam intrínsecos a experiência da busca pela beleza ideal. Viver um transtorno alimentar não é uma experiência tida por todas as mulheres ao longo da vida, mas os números são altos.
Conforme dados da OMS, tais distúrbios afetam cerca de 4,7% dos brasileiros, sendo que entre os adolescentes esse índice pode chegar até a 10% da população. Os números se referem aos transtornos submetidos a um diagnóstico, mas quando se fala em doenças emocionais, a subnotificação é quase sinônimo.
Entre os riscos, a perda da qualidade de vida é apenas o primeiro passo dado por quem cruza uma fronteira perigosa em busca de um padrão. Dias tomados por uma relação conflituosa com a comida, sendo pela falta ou pelo excesso, o equilíbrio parece distante demais diante da doença emocional. De tanto que dói internamente, o problema toma conta do lado de fora.
“Considerando que o padrão imposto é biologicamente impossível para a maioria das pessoas, o desenvolvimento de comportamentos radicais para alcançar esse objetivo se torna um caminho possível. Além de consequencias físicos e mentais, os transtornos têm preocupado os profissionais da saúde, devido ao aumento de casos de suicídio entre os portadores de tais transtornos”, acrescentou a psicóloga Rayane Carlos.
Uma rotina de excessos provocados pela falta
Dentre os transtornos mais conhecidos está a compulsão alimentar. Diferente dos distúrbios envolvidos pela falta de comida, esse excesso é muito presente em pacientes que vivem outros tipos de patologias, como a ansiedade e a depressão. A comida como uma fuga, como uma companheira, como um escape diante de adversidades é uma alternativa encontrada por 4,7% da população brasileira, também de acordo com a OMS.
Esse número é quase duas vezes maior que a média mundial, que gira em torno de 2,6% da população. Aqui no país, a incidência é maior em jovens mulheres de 14 a 18 anos. Foi bem antes dessa idade mínima que Júlia Magalhães se viu em crise pela primeira vez. Aos 26 anos hoje, ela convive com o diagnóstico de um transtorno que teve início ainda na infância, quando nem imaginava o que podia ser.
A terapia começou aos 19, quando entendeu do que se tratavam os episódios. Eram dias e dias comendo muito com quem engole emoções, que no seu caso se revestem de uma ansiedade patológica.
“Quando estou numa fase que preciso ter muita responsabilidade, aí a compulsão começa. Sinto uma sensação de fome durante todo o dia, isso faz com que eu fique beliscando toda hora. No período de compulsão qualquer comida serve, mas tenho uma tendência a comer só doces. Almoço e janto algo doce”, desabafa Julia.
Numa dessas crises a estudante chegou a engordar 25 quilos. O ganho de peso, por si só, não é sinônimo de adoecimento. Ser uma pessoa gorda também não. Mas um ganho rápido, desencadeado por uma rotina de excessos causados por um sofrimento emocional, isso sim é um problema. E além de lidar com um problema diário, ela passou a encarar uma imagem de si diferente da que estava acostumada.
“A compulsão afeta muito a minha vida, principalmente a autoestima, que fica baixa devido a necessidade constante de emagrecer. Além disso, afeta bastante a área financeira, pois sempre gasto dinheiro comprando alguma coisa pra comer, mesmo quando não estou sentindo fome”, conclui Júlia.
Se equilibrar diante de um diagnóstico cuja cura é abstrata é um desafio, e muitas vezes o modo correto de cuidados não é o oferecido. Para Júlia o caminho tem sido multidisciplinar, envolve cuidados psicológicos e nutricionais, mas essa não é a realidade de grande parte das pessoas que convivem com algum transtorno.
Equilíbrio como oposto de restrição: a busca por uma vida saudável
De volta a rotina alimentar da participante Bárbara, do BBB, especialistas como Max Vinícius apontam que há uma rotina de restrição alimentar no dia a dia da modelo, e que esse tipo de dieta não é sinônimo de vida saudável. Max é nutricionista comportamental e sempre buscou entender os corpos como complexos e únicos, o que significa que as experiências são pessoais, e que apesar de perceber problemas, não é possível diagnosticar ninguém assistindo um programa de televisão.
No entanto, ele aceitou entrar no debate sobre a relação entre equilíbrio alimentar e vida saudável, e foi determinante sobre de que modo a restrição se posiciona nesse contexto.
“Não é uma boa solução, não existe receita milagrosa quando se trata de saúde. Restrição alimentar causa muitas mudanças no corpo, e o processo de compensação que vem dos jejuns pode ser muito prejudicial. Será que acreditamos que essa mentalidade de dieta tem a ver com a saúde ou com o que a gente consome na mídia? Restringir não é a solução”, explica o nutricionista.
Ao tratar da mentalidade da dieta, o profissional se refere ao discurso difundido nas redes sociais, e até por muitos especialistas, de que uma vida saudável é sinônimo de uma vida repleta de dietas específicas, com alimentos sendo postos como vilões e dissociados de uma conquista de saúde. Para ele, essa visão é prejudicial e pode causar transtornos alimentares.
Já o fator compensação é comentado pelo especialista ao falar sobre outro participante do reality. O cantor e ator Arthur Aguiar passou por uma diete restritiva durante um mês antes de entrar no programa, com o objetivo de emagrecer. Após entrar no BBB, o nutricionista afirma que o artista tem descontado o período em que não pode comer carboidratos, doces e gorduras. Mas, mais uma vez, destaca que não é possível fazer um diangóstico de compulsão ou algo semelhante em relação a alguém cujo histórico não se conhece, mas que o comportamento ilustra, sim, uma tentativa de compensação depois de viver uma restrição.
Leia ainda:
- Polêmica do pão no BBB 22: nutricionistas falam de carboidratos e importância do equilíbrio na dieta
A nutrição pautada na humanização dos pacientes não leva em conta apenas o quão perto ou longe o paciente está do corpo ideal, mas busca entender contextos biológicos, psicológicos, sociais e econômicos dos indivíduos. Uma alimentação que demoniza determinados alimentos leva, de acordo com Max, a uma relação de culpa com a comida.
“A solução é ter uma boa relação com a comida Os impactos da restrição é essa categorização da comida em alimentos bons e ruins. A partir do momento que se demoniza pão e chocolate se entra no ciclo da culpa, e quando a pessoa for comer pode comer em exagero, para compensar a falta, e tudo isso nos deixa mais suscetíveis a transtornos alimentares”, explica.
Esses riscos não anulam o fato de que, dietas que restringem determinados alimentos podem ser utilizados por nutricionistas para tratar de algum problema de saúde, desde que haja uma necessidade específica naquele momento. No entanto, de acordo com o nutricionista comportamental, esses hábitos não devem ser utilizados como uma receita pronta, a ser utilizada por qualquer pessoa em busca de um padrão.
“Transtorno alimentar é algo individual onde, cada um, a depender do momento em que está vive os distúrbios de formas diferentes. Para lidar com isso é preciso um tratamento multidisciplinar. Não adianta procurar um médico que ache que mais dietas restritivas resolvem o problema, porque isso só causa ainda mais prejuízos à saúde”, finaliza o especialista.
Comentários