VIDA URBANA
Ciganos enfrentam rotina de discriminação e preconceito na PB
Diversos casos foram relatados ao MPF durante audiências públicas, em Patos e Sousa.
Publicado em 24/05/2017 às 11:45
Lutando pelo direito de ir e vir, os ciganos ainda enfrentam uma dura realidade na Paraíba: discriminação e preconceito. Neste 24 de maio, quando é comemorado o dia do cigano, ainda há relatos de situações que envolvem racismo institucional, intimidação e abuso de autoridade, relatadas pelos ciganos durante duas audiências públicas promovidas pelo Ministério Público Federal (MPF), em Patos e Sousa.
O objetivo das audiências, ocorridas em março, foi articular uma rede de proteção aos direitos dessa minoria étnica. Membros do MPF e representantes de diversos órgãos públicos, nas esferas estadual e municipal, e também de entidades e conselhos, participaram das audiências. “A gente sempre é visto com muita discriminação. Não temos nenhum apoio, nenhuma ajuda”, relata Jane Soares, presidente da Associação Comunitária dos Ciganos de Condado-PB (Ascocic).
O estatuto da associação prevê atuação em âmbito regional, nacional e internacional. “Nossos ciganos moram em Condado desde 1952 e nunca foram pegos roubando, matando, estuprando, invadindo, mas esse preconceito é terrível. Eu acho que Condado é o município que mais discrimina o povo cigano, mas a gente é tudo natural de lá e tem dificuldade de se desapegar de lá. Mesmo que a gente precise viajar para buscar nosso pão, a gente volta para Condado”, completou a presidente.
Durante as audiências, foi relembrado que há 20 anos um membro do Ministério Público Federal na Paraíba (MPF), deu um salvo de conduto, documento que autoriza alguém a viajar livremente, a um cigano que sempre era abordado e detido pela polícia na divisa entre os estados da Paraíba e Pernambuco. Além desse documento, o MPF lembra que outra declaração foi expedida por um membro do órgão, em 2015, para um dos integrantes do grupo cigano calon, na cidade de Condado.
Violação de direitos
A população cigana do município de Condado tem sido objeto de estudos antropológicos e, desde 2013, também é alvo do projeto de extensão de Assessoria Jurídica Popular, Direitos Humanos e Comunidades Tradicionais (Ajup), desenvolvido pelo curso de direito das Faculdades Integradas de Patos. A Ajup participou da audiência pública em Patos e entregou para o Ministério Público Federal diversos documentos, entre eles uma carta reivindicativa e um dossiê, no qual relata casos de violação de direitos dos ciganos ocorridos em Condado.
Intolerância
Um desses casos retrata a intolerância dos jovens não-ciganos para com os ciganos no município. Para evitar confronto, a administração pública determinou horários específicos para os jovens usarem o campo de futebol. “Os jovens de lá não querem jogar com os nossos. Então, tem um dia dos ciganos jogarem separados dos não-ciganos”, conta Maria Jane Soares, presidente da Ascocic. Ocorre que em certa ocasião, os rapazes não-ciganos chegaram antes do horário determinado e, segundo o dossiê da Ajup, impediram os ciganos de utilizar o bebedouro público. “Naquele bebedouro os ciganos não bebem”, disseram. O caso acabou em confusão e um jovem não-cigano registrou uma queixa de lesão corporal contra os rapazes ciganos.
Portas fechadas
Outro aspecto da discriminação ocorre na busca por uma vaga no mercado de trabalho. Jane Soares relata que já procurou emprego para os jovens ciganos em Condado e em diversas cidades da Paraíba. “Eles me pedem: ‘tia, arruma um emprego para mim’”, conta a presidente da associação. “Já pedi tanto aos supermercados para darem emprego aos nossos jovens, uma chance, porque eles são jovens que têm responsabilidade, têm nome limpo, mas a dificuldade é máxima para um cigano arrumar um emprego”. Os próprios jovens também procuram eles mesmos conseguir um emprego, mas não são atendidos, relata.
As portas do mercado de trabalho também se fecham para os ciganos em Sousa, no sertão paraibano, cidade que registra a maior população cigana do estado. É o que relata o estudante universitário João Dias Pereira. Ele cursa Sociologia e tem previsão de colar grau no final do primeiro semestre de 2018. João Dias conta que no município várias fábricas estão sendo abertas. “Eu fiz o currículo e fui entregar ao rapaz. Ele olhou meu currículo e disse ‘olha, o seu currículo é bom, só que aqui não dá para você trabalhar e vou até te dar um conselho: quando você for fazer um currículo, não coloque que mora nessa rua, nem que você é cigano”, relembra.
Leitura de mãos
Para sobreviver, os ciganos ainda realizam troca e venda. Antigamente, os integrantes do segmento que vivem em Condado trocavam animais, selas, barracas. “Era um porco, um bode, uma galinha”, conta Jane Soares. “Hoje, quem tem carro [troca] é carro, quem tem moto troca moto, sobrevive de negócio, como começou o mundo”, explica. Já as mulheres conseguem algum dinheiro lendo mão e jogando cartas. Muitos também pedem esmolas para comer. A presidente da Ascocic lembra que as mulheres ciganas eram presas na Paraíba por praticarem a leitura de mãos. “E ainda hoje são”, acrescenta.
Não é crime
Conforme o subprocurador-geral da República Luciano Mariz Maia, não existe nenhum enquadramento penal para leitura de mão e leitura de cartas. “Já houve no ordenamento jurídico brasileiro uma contravenção penal que significava exploração da fé pública, mas esse dispositivo legal foi revogado e não há mais lei criminalizando a atividade da credulidade pública”, esclarece.
Comentários