No dia 24 de agosto de 1975, por volta das 17h, alguém gritou: “A balsa está virando!”. Todos correram para a margem da lagoa do Parque Solon de Lucena, em João Pessoa, para assistir à cena. Uma embarcação militar com cerca de 100 pessoas estava naufragando diante de uma multidão, durante as comemorações do Exército Brasileiro. Naquele dia, 35 pessoas morreram, sendo a maioria crianças.
O grito partiu de alguém que estava na casa do advogado Inaldo Dantas, que na época tinha 14 anos. Ele morava em uma esquina do parque, quando a lagoa ainda era o principal ponto de encontro e lazer da população. Inaldo, a família e os amigos deixaram o terraço da residência, correram em direção à lagoa e se depararam com a tragédia.
Naquele domingo, o parque recebia uma exposição militar do Exército que tinha como atração um passeio em uma portada M-2, uma espécie de balsa, embarcação projetada para transportar viaturas e até mesmo tanques. Mas, em meio à demonstração, a água começou a invadir o barco, que não resistiu e acabou virando.
"Era uma cidade muito pequena, não era praiana, era uma cidade bastante interiorana. Então, quando aparece essa novidade, era uns carros-tanque, armamento, especialmente o barco, e isso incendiou as imaginações. Principalmente a criançada, todo mundo ficou querendo ir, era uma novidade grande para a cidade, e isso suscitou um público muito grande. Infelizmente a gente sabe o que acabou acontecendo", afirmou o historiador Ângelo Emílio.
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50 anos depois, ainda há quem olhe para a lagoa do Parque Solon de Lucena e só consiga lembrar de uma das maiores tragédias da história de João Pessoa. Um sobrevivente, um bombeiro que participou dos resgates e testemunhas contaram ao Jornal da Paraíba e à TV Cabo Branco que é difícil esquecer aquelas cenas.
'Tudo aconteceu em questão de segundos', lembra sobrevivente

O mecânico aposentado, João Bosco de Andrade, de 70 anos, lembra que aquele dia começou como outro qualquer. Natural de Triunfo, no Sertão da Paraíba, havia apenas três meses que ele estava na capital paraibana e se empolgou com a ideia de passear de barco na lagoa. Naquela época, ele tinha apenas 20 anos e lembra que a portada M-2 estava cheia de pessoas.
Era o último passeio daquele dia, e o inquérito militar do Exército Brasileiro estimou que havia de 100 a 120 pessoas na portada, todas sem colete salva-vidas. Segundo a instituição, esses equipamentos de segurança não seriam obrigatórios para embarcações militares. Famílias inteiras de civis estavam participando da demonstração.
A portada tinha pequenos barcos nas laterais, onde ficavam as crianças e os familiares. Os passeios aconteciam o dia todo, com os militares organizando o embarque e colocando as pessoas nos barcos. Em seguida, a embarcação passeava em movimento circular por toda a lagoa.
"Eu lembro bem que, quando a gente tava no barco, faltava bem pouquinho pra água chegar em cima do barco. Uma ondazinha veio, pum, jogou água dentro do barco. Eu me lembro bem que o povo começou a se afastar assim, para não se molhar, né? Eu me lembro que ela (a embarcação) levantou. Aí, quando o barco levantou, eu pulei [...] Eu lembro que teve um que disse: 'Rapaz, tem muita gente, viu?' Mas tava tudo normal, e tudo isso aconteceu em questão de segundos. Foi ligeiro mesmo", afirmou João Bosco.
João Bosco lembra que começou a nadar, foi retirado de dentro da lagoa, colocado dentro de uma ambulância e levado para um pronto-socorro da cidade. Ele perdeu as roupas que vestia e a bolsa que levava, e estava só com uma calça no corpo. "Quando eu cheguei no pronto-socorro, eu fiquei desesperado, porque me lembrei do meu irmão, que estava com duas crianças", contou.
Na mesma noite, quando conseguiu deixar o hospital, pegou uma ambulância de volta para a lagoa e começou a procurar pelo irmão. Muitas pessoas já se reuniam no parque para acompanhar o trabalho dos bombeiros, e ele lembra que havia carros no anel interno com os faróis acesos para iluminar a água e facilitar os resgates.
Sem conseguir encontrar o irmão e impedido de entrar na lagoa para procurá-lo, decidiu pegar um ônibus e seguir para a casa da namorada dele. Por volta das 23 horas, o irmão apareceu com as crianças e contou que haviam sido resgatados por um bote. Para o aposentado, aquele dia foi como nascer de novo.
"Eu fiquei, francamente, mais ou menos uma semana sem conseguir nem dormir direito. Foram dias perturbadores", lembra João Bosco.

Na Tragédia da Lagoa, 35 pessoas não resistiram e morreram afogadas no local. Entre os mortos estavam 20 crianças de até 12 anos e quatro adolescentes, com idades entre 13 e 17 anos. A tragédia também vitimou 11 adultos, sendo seis mulheres e cinco homens.
O Exército Brasileiro instaurou um inquérito militar para investigar as causas do acidente, mas concluiu que o naufrágio foi causado por um "início de pânico" nos botes dianteiros da portada. Segundo o documento, os civis começaram a levantar dos seus lugares e a se movimentar, causando um desequilíbrio na embarcação.
O caso não foi considerado crime militar, nem transgressão disciplinar. A investigação também concluiu que não houve falha material, que a portada estava em boas condições e foi utilizada dentro dos limites de carga. Segundo o relatório, o condutor da embarcação tinha experiência e não foi imprudente ou negligente em qualquer momento, e que a tripulação agiu rápido no salvamento das vítimas.
Resgates ainda emocionam bombeiro

Uma imagem publicada pelo extinto Jornal O Norte mostra dois bombeiros dentro de um bote salva-vidas, na lagoa do Parque Solon de Lucena, segurando o corpo de um pessoa que morreu afogada na tragédia.
O bombeiro que aparece de costas na foto é o tenente aposentado Edmilson Antônio dos Santos, de 79 anos. Na época, ele havia acabado de ser promovido a sargento, tinha 29 anos e foi convocado, na manhã seguinte ao acidente, para participar dos resgates.
“A cena não era boa. Era gente chorando, gente rezando, e todo mundo queria resgatar os corpos. O anel (interno da lagoa) estava repleto. Naquela época, o comércio abria mais cedo e todo mundo já estava aqui, todo mundo querendo ver o resultado dos bombeiros”, lembrou o tenente aposentado.
Edmilson conta que as equipes usavam uma garateia para tentar encontrar os corpos dentro da lagoa. O equipamento tem corda-guia e três ou quatro ganchos, que eram lançados na água e enroscavam nos corpos que ficaram espalhados na lagoa.
“Por volta das 10 horas, a gente encontrou o corpo de um sargento, forte, de 1,80 metro. Todo mundo se aproximou para olhar. Ele (a vítima) estava fardado. A gente teve aquela surpresa. Não é só a minha pessoa, todo mundo que estava na área pensa que ia tirar vivo. A esperança é que seja retirado vivo. Boa parte da população esperava que saísse vivo”, afirmou o tenente aposentado.
Depois de 50 anos, esse momento ainda emociona o tenente porque aquela vítima também era um militar como ele, um companheiro de farda. Mas não só isso: ao ver tantas crianças mortas, ele, que já era pai de três filhos, também se colocava no lugar dos pais que perderam suas crianças.

O repórter cinematográfico Marcos Cardoso, de 60 anos, lembra que, na mesma manhã de segunda-feira, já sabendo da tragédia, ele e os amigos faltaram à escola e foram ao Parque Solon de Lucena assistir aos resgates. Marcos tinha apenas 10 anos e conta que, na época, não compreendia a tristeza do que estava vendo, mas hoje enxerga a cena de forma diferente.
"Eles (os bombeiros) passavam em uma lancha rodando ao redor da fonte com velocidade. E vez ou outra subia um corpo. Aí a turma gritava: 'Ali um, ali um'. Os bombeiros que estavam na lancha pegavam (o corpo). E eu lembro muito bem de bombeiro pegando acho que era uma garotinha de cabelo grande. E também mais um adulto, como se tivesse duas crianças com ele nos braços. Lembro muito disso", relembra Marcos Cardoso.
Além do repórter cinematográfico Marcos Cardoso e os amigos, centenas de pessoas também se reuniram nas margens da lagoa para assistir ao resgate.
"É algo que a cidade não pode esquecer", diz historiador

O historiador Ângelo Emílio defende que o Parque Solon de Lucena deveria ter um memorial para lembrar a Tragédia da Lagoa. Segundo ele, na época do acidente, houve uma "tentativa de abafamento" pela ditadura militar e as apurações civis e responsabilidades básicas não foram devidamente feitas.
Ângelo Emílio também acredita que houve um descuido em relação às normas básicas de segurança. Ele afirma que se as responsibilidades não serão apuradas mais, é dever manter a memória das vítimas.
Em nota, a Prefeitura e a Câmara Municipal de João Pessoa afirmaram que não há nenhum projeto em andamento para a construção de um memorial. O Exército Brasileiro foi procurado pela Rede Paraíba de Comunicação para conceder entrevista, mas não aceitou. Também foi solicitada uma resposta por meio de nota, mas até o momento não obtivemos retorno.
"É algo que a cidade não pode esquecer. É o que a gente definiria como direito à memória. A relação entre memória e cidadania é uma relação importante para a gente ter isso. Me parece que o marco, o nome dessas pessoas, seria algo simbólico, uma reparação simbólica que a cidade de João Pessoa poderia prestar", afirmou.

Até hoje, as cenas da tragédia não saíram da memória de Inaldo Dantas. “Sempre que eu olho para a lagoa, lembro da tragédia. É um ambiente, hoje, de festas, mas, para mim, sempre lembro do que aconteceu aqui, se não a maior, uma das maiores tragédias da cidade”, afirmou Inaldo.
O tenente aposentado do Corpo de Bombeiros, Edmilson Antônio, também define a tragédia como o caso mais emblemático da carreira dele e conta que, de vez em quando, o acidente ainda vem à memória. Ele afirma que tirou várias lições do acidente, mas a tragédia também é um alerta para os governantes.
“Eu acho que João Pessoa e o estado da Paraíba não estavam preparados para receber um evento daquela magnitude. Até hoje, eu acho que foi o maior desastre da história de João Pessoa nos últimos 50 anos. Ela serve para as autoridades, não para criar novas leis, mas para fazer cumprir as leis existentes. A prevenção ainda é o melhor caminho. Com prevenção, não se tem despesa, tem investimento”, afirmou o tenente aposentado.
Preservando a história de uma tragédia

A história do que aconteceu após a Tragédia da Lagoa é registrada em processos judiciais movidos pelas famílias das vítimas na Justiça Federal da Paraíba (JFPB). Esses documentos foram desarquivados em 2013, e parte deles é exibida em um museu localizado no Fórum Rivaldo Costa, no bairro Pedro Gondim, em João Pessoa.
Entre os mais de 180 mil processos arquivados do órgão, uma comissão que tratava dos documentos se deparou com as ações da tragédia. Sem conseguir as indenizações junto ao Governo Federal, 16 famílias entraram na Justiça e conquistaram o direito a pensões alimentícias, além dos valores retroativos correspondentes ao período entre a data do acidente e a implantação das mensalidades.
O presidente da Comissão de Gestão Documental de Processos Judiciais do órgão, Carlos Moreira, conta que a tragédia teve uma grande repercussão nacional e tem relevância histórica. “A comoção tomada pela sociedade na ocasião, devido às mortes, em uma semana festiva, fez com que a comissão a selecionasse para o acervo histórico. Eu mesmo cheguei a participar desse passeio com meu pai e minha mãe dias antes. Eu tinha cinco anos de idade”, conta Carlos Moreira.
A supervisora da biblioteca da Justiça Federal, Dulcinete Carneiro, também participou do processo de resgate dessa história e idealizou o museu do órgão. Ela conta que os documentos da tragédia foram restaurados e parte deles foi levada para o Memorial da JFPB, que foi inaugurado em 2025. A entrada é aberta ao público geral e gratuita.
“É um dos principais documentos expostos aqui para a sociedade conhecer o que aconteceu naquela época. Eu digo que é um processo vivo, eu digo que ele não morreu; ele se encerrou na Justiça Federal, mas, para a sociedade, continua vivo”, conta Dulcinete Carneiro.
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