COMUNIDADE
Lugar de Fala: impor padrões é atualizar barbárie e fortalecer colonialidade do poder
Num contexto social repleto de hierarquias, é no passado problemático que ideologias se ancoram para manter desigualdades. Um texto sobre como decolonizar o olhar e ampliar os debates.
Publicado em 20/01/2023 às 13:38 | Atualizado em 15/03/2023 às 12:42
O verão brasileiro não tem igual, há os que dizem. O calor inebriante só cessa com cerveja gelada, belas praias e as companhias perfeitas para curtir a estação mais quente do ano. No Verão 2023 os altos índices são também de instabilidade econômica. Dia desses expus meu privilegiado corpo ao sol. Ócio, na terra das discrepâncias, é sinônimo de não precisar vender cada segundo do seu tempo em troca da possibilidade de existir.
Na espera da carona paga, em frente a um famoso food park na cara orla pessoense, avistei um menino. Nas mãos carregava jujubas, doces vendidos por uma criança que merecia se preocupar apenas com os doces disponíveis para o seu deleite. As roupas gastas denunciavam que a moda pouco tem de democrática. Jovem demais pra ser maltratado, preto demais para ser visto. E na balança desigual a classe média escolheu ignorá-lo.
Por alguns minutos vi a cena se repetir. Famílias, casais, homens, mulheres e idosos, todos desviaram a rota do menino invisível. Gente que se sentia limpa demais, bonita demais, inteligente demais, endinheirada demais. De menos, ali, apenas a capacidade de ver os “brasis” para além dos muros do condomínio. Este país é tomado por uma parcela alienada e alienante, que envolta por uma fantasia de elite não vê nas calçadas espaço suficiente para dividir com os pobres.
Quais semelhanças carregamos com a América Latina do século 16? Quais heranças da colonização de exploração que viveu, não só o Brasil, mas diversos países das Américas e do continente africano? Muito ouvimos sobre o tempo em que nosso país era colônia, quando Portugal era metrópole e mantinha os poderes políticos e econômicos.
Nessa época pouco se sabia sobre liberdade, não só porque nosso país estava totalmente atrelado a uma nação europeia, mas porque tínhamos uma sociedade baseada na escravidão. Como falar em liberdade e justiça com grupos sendo postos como mercadoria? As consequências do período colonial não se limitaram à chegada da independência. O que não foi disseminado ontem deixou rastros atrozes até hoje.
Tudo que falei até agora é sobre colonização, o que veio depois que se trata de colonialidade. E aqui falo sobre colonialidade do poder. Há uma obra que sempre uso como referência para iniciar esse assunto. O pensador peruano Aníbal Quijano escreveu o ensaio "Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”. O texto é muito bom, recomendo bastante. Entre as principais reflexões, Quijano trouxe o surgimento do racismo, com referências históricas ele atrela o preconceito de cor e etnia a consolidação do capitalismo.
Ele traça a linha de construção da ideologia de conquistadores e conquistados (de territórios, nações e culturas) e como esse passado costuma ser contado como um processo natural, quando na verdade se tratou de imposição de superioridade pela força e exploração. O que quero dizer com isso? A hierarquia racial presente com muita força na América Latina, totalmente relacionada com a escravidão, foi uma estratégia criada por países europeus para dominar povos daqui e do continente africano.
Isso é óbvio para muita gente, eu sei, mas quantas vezes enxergamos os resultados desse projeto nas dinâmicas sociais atuais? Quijano explica que raça, em seu aspecto social, foi algo projetado para submeter povos e lucrar com a desigualdade. Antes disso, existiam apenas pessoas. Branco, preto e todo o abismo entre esses grupos surgiu como uma estratégia política e econômica de dominação.
Ontem colônia, hoje subdesenvolvido
Dissociar o passado dos entraves vividos por países subdesenvolvidos no presente é ignorar que a miséria pode ser plataforma de crescimento para pequenos grupos. A fome que assola, atualmente, o Brasil é vista nas esquinas e portas de supermercados, mas nas telas dos nossos celulares o que vemos são transmissões ininterruptas das vidas gloriosas de minorias sem limites financeiros.
A discrepância de contextos, por vezes, tão próximos geograficamente é a barbárie atualizada. Retratos de uma nação que seria outra, talvez, se não tivesse sido forjada na trilha de explorações.
Mas de que modo esse ideal que autorizava a barbárie no passado foi normalizado? Para que a escravidão fosse aceita foi preciso destituir os corpos negros e, em muitos países americanos, corpos indígenas de humanidade. Isso era feito através da construção meticulosa do racismo científico pelos séculos, apontando os grupos minorizados como inferiores intelectualmente. Outra grande armadilha foi colocar esse grupos como sinônimos de selvageria e descontrole sexual, como se negros e indígenas fossem seres perigosos por questões biológicas e tivessem que ser controlados e mantidos em posição de subserviência.
E sobre tudo isso não sou eu quem te conta, mas diversas intelectuais que produziram literaturas e resistência ao longo da história. Entre mulheres negras tivemos nomes como Lélia Gonzalez e Conceição Evaristo (entre tantas outras) que falam exatamente sobre a exaustão da sexualização que vem desde o período escravocrata, desde que as pretas eram estupradas em série por senhores de engenho.
Hoje o retrato é escancarado, conforme dados do Fórum Nacional de Segurança Pública, divulgados em 2022, a chance de uma mulher negra ser estuprada é 11,3% maior do que uma mulher branca. Entre as vítimas de estupro com até 13 anos de idade, 49,4% foram crianças negras. Não há como negar que no Brasil de 2023 escorre o sangue dos açoites seculares.
Outro nome fundamental para refletir sobre a colonialidade e suas violências é Eliane Potiguara, considerada a primeira mulher indigena brasileira a publicar um livro. A educadora já sofreu na pele o racismo institucional ao ser violentada, física e psicologicamente, por correr atrás das memórias de seus antepassados e defender seus parentes indígenas. Defende com tudo que tem um feminismo indígena, que entenda os desafios das mulheres originárias.
Entre esses grupos há um problema histórico, o Ministério da Saúde já ressaltou várias vezes que os índices de suicídio são maiores entre indígenas. O desafio da luta por territórios, os preconceitos e o genocídio contra os povos são algumas das razões abordadas por ativistas da área, e demonstra o pesadelo causado pelo chão histórico do Brasil.
Ampliando os diálogos e decolonizando o olhar
Voltando a discussão sobre colonialidade que Aníbal Quijano traz, o centro de tudo é: ainda que tenhamos superado o processo de colonização, os países da América Latina sofrem com os danos dessas construções de poder até hoje. Colonialidade é essa nuvem que paira sobre determinados povos, sempre separando grupos e criando hierarquias que resultam em desigualdades que vão sendo alimentadas pela criação de novos padrões.
O certo, dentro da colonialidade, é ser homem, branco, heterossexual, de (qualquer que seja) origem europeia e bem posicionado em termos de classes. Nas criações culturais outros vários padrões surgem e a colonialidade do poder ganha outras versões. No Brasil, a região nordeste sofre xenofobia, por exemplo. Quando falamos em padrão estético existe a gordofobia para definir que corpos magros são o ideal.
Há hierarquias religiosas, hierarquias de poder intelectual. Todos esses padrões têm forte influência do capitalismo e servem, principalmente, para manter uma estrutura excludente e pouco plural. Muitos lucram com a manutenção de padrões, sejam os grupos políticos que tentam a todo custo se revezar em poucos e seguir no poder, sejam as indústrias de cosméticos e os países ricos que continuam explorando países pobres numa lógica colonial.
Em contrapartida, Quijano e diversos intelectuais, homens e mulheres das Américas, do continente africano e de partes específicas da Europa produzem estudos sobre como descolonizar esse olhar que só nos separa através dos padrões.
Na América Latina o conceito se chama ‘decolonialidade’, e o objetivo é questionar essas hierarquias, questionar essas construções de poder e sempre fazer o exercício de refletir porque as coisas são como são. A brasileira já citada aqui, Lélia Gonzalez, foi uma dessas pensadoras. Ela propôs um pensamento que conecte América Latina e África nas potências e numa nova forma de ver o mundo, Lélia esperava que as perspectivas dos povos que sofreram as dores da colonização pudessem contar novas histórias.
Não aceitar os padrões e pensar de quais formas eles podem ser quebrados para que o mundo seja mais plural e respeitoso é se livrar da tentativa de colonização das nossas mentes. Se tantos desses padrões foram construídos há séculos, num mundo onde quase ninguém sabia sobre liberdade, qual o valor deles em pleno século 21? Te convido a pensar.
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