COMUNIDADE
Opinião: Qual lugar de fala dos jornalistas?
Entre atentados contra a liberdade de imprensa, Jornal da Paraíba terá coluna semanal para debater a importância do jornalismo que reivindica diversidade e defende os Direitos Humanos.
Publicado em 12/01/2023 às 13:50 | Atualizado em 15/03/2023 às 12:44
Qual o principal papel do jornalismo ao longo da história? Para responder com verdade é preciso deixar de lado o anacronismo, entender época por época, e assumir que a imprensa demorou para ser o que é hoje.
‘Tempo’ é um marcador preponderante para se conhecer os caminhos do jornalismo, que por inúmeras vezes se construiu com base em interesses, sejam políticos ou empresariais. Existem registros de difusão de informações desde a Roma Antiga, na época as escrituras eram feitas em metais e pedras, o conteúdo divulgava feitos militares dos detentores de poder.
Foi no século 15 que surgiu um jornal, minimamente, parecido com o de hoje, após a criação da imprensa. Feitas de papel e tão voláteis quanto a matéria-prima, as notícias seguiam atendendo aos interesses de poderosos, as tiragens eram baixas e o acesso limitado, com populações majoritariamente analfabetas.
Com o barateamento da produção, que se tornou de larga escala, e o aumento da alfabetização, o que entendemos hoje por notícia foi se popularizando. Passou por períodos onde a literatura exercia forte influência, através dos folhetins. Virou negócio, fonte de renda e trabalho. Um negócio lucrativo o suficiente para que a notícia migrasse do teor meramente panfletário para se tornar mercadoria.
Os assuntos mais populares variam a depender da época, mas o “bad news is good news” sempre teve seu grande espaço. Lembro facilmente do meu primeiro ano de universidade quando li a frase que, em tradução direta, significa: “notícias ruins são boas notícias”. O pesquisador em comunicação Mauro Wolf explicava que tragédias vendiam feito água, a ponto da dor virar critério número um de noticiabilidade.
Olhares e propósitos: as contradições noticiosas
Com o passar do tempo e as transformações, que não esqueçamos de citar as tecnológicas e sociais, o jornalismo foi se tornando o que faziam dele, e muito do que fizeram foi reflexo de diversas outras camadas da sociedade. Durante a escravidão, que no Brasil quase alcançou seus quatro séculos de brutalidade legalizada, os jornais eram condescendentes com a prática e tinham espaço, até, para divulgação de venda de escravizados.
Na contramão do tradicionalismo, em 1833, no Rio de Janeiro, era criado “O Homem de Cor”, o primeiro jornal brasileiro a defender a perspectiva da comunidade negra e denunciar casos de racismo. Prova maior de que os grupos minorizados sempre se movimentaram não há.
Já se teve jornalismo tradicional, de massas, apoiando a ditadura militar no Brasil e aplaudindo ditador responsável por numa canetada, ou numa ausência dela, autorizar tortura. Nessa mesma época não eram poucas as iniciativas independentes que utilizavam o jornalismo e a produção noticiosa para defender as vítimas do regime.
Foi na década de 1970 que o Jornal do Movimento Negro Unificado, que contou com nomes célebres como Abdias do Nascimento, usou a palavra como principal arma para denuncusr os horrores que o racismo e a ausência de democracia causavam às populações negras. Com notícias de crimes raciais, poemas sobre beleza negra e reportagens sobre os desafios das populações.
A dualidade de linhas editoriais deixa nítido uma coisa: sempre existiu um jornalismo comprometido com a justiça social, a liberdade e a democracia, mas tais propósitos nem sempre estiveram presentes na produção do jornalismo tradicional.
Qual lugar de fala do jornalismo?
Na esteira da retroalimentação mantida, por mais de século, entre jornalismo tradicional e senso comum, vimos, por muito tempo, uma ausência de questionamentos essenciais e uma reprodução, insistente, de vários preconceitos.
Num espelho dos principais espaços de poder (afinal, a mídia é posta como nosso quarto poder), as redações foram se construindo como ambientes brancos, heterossexuais, onde homens eram maioria e a discussão de gênero passou tempos sem existir. Se os produtores de notícia falavam de um só lugar social, se tornou comum que os demais grupos fossem pauta, apenas, em tragédias e, por vezes, de forma estereotipada.
O preto sempre como o que matou, morreu ou foi preso. A mulher negra pobre sempre aos prantos pela morte do seu filho que “tinha envolvimento” com algo ilícito. Homens brancos como a grande maioria dos especialistas e intelectuais consultados. Pessoas trans? Citadas apenas quando assassinadas e, geralmente, tendo seu nome social e pronome de identificação desrespeitados. Por muito tempo esse foi o ‘lugar de fala’ do jornalismo de massas, um lugar reprodutor de exclusão.
E isso não tira o valor dos trabalhos que denunciaram a fome do povo, as irregularidades políticas e ficaram ao lado da população como órgão fiscalizador. Entre um turbilhão de fatos, um dos principais é que não existe democracia plena sem liberdade de imprensa, sem que os jornalistas possam exercer sua vigilância em prol de uma comunidade informada e ciente dos aspectos que a cercam.
Isso torna compreensível a necessidade que líderes políticos autoritários têm de tentar calar as vozes da imprensa, na mesma medida que espalham desinformação em proporções catastróficas. Um povo narcotizado por mentiras, e até mesmo por verdades descontextualizadas, precisa de um porto seguro informacional a que possa recorrer. Mas isso não basta, nunca bastou.
Nunca bastou porque a maioria minorizada (lê-se os pretos, indígenas, pobres, deficientes, as pessoas com deficiência, os LGBTQIA+ e tantos outros detentores de direitos tão humanos quanto todos os outros) entendeu que havia algo errado. Tais grupos entenderam que a mídia, enquanto construtora de identidade social, estava reforçando dores históricas e estruturais.
Quando George Floyd foi assassinado, a imprensa perdeu o fôlego. Se viu apática e sem saber abordar a morte de um preto que foi, literalmente, esmagado pelo racismo institucional. A partir dali não seria mais normal dizer que “homem é morto asfixiado pela polícia”, a partir dali aquele homem tinha uma cor que justificava (aos olhos da estrutura racista) não apenas sua morte, mas a tortura e o genocídio de tantos como ele.
Um momento histórico na imprensa do Brasil veio a partir disso, vimos uma tela preenchida apenas com jornalistas negros. A GloboNews fez uma autocrítica, compreendeu a importância e fez uma edição especial com profissionais pretos da casa comentando sobre suas dificuldades ao longo dos anos e reforçando que é preciso proporcionalidade nas contratações.
Foi se entendendo, aos poucos, que o ‘lugar de fala’ do jornalista tem nome e sobrenome: reparação histórica. Reparar é chamar as coisas do que são: racismo, machismo, lgtb+fobia, capacitismo, gordofobia. Reparar é assumir erros, é educar para que as práticas tenham fim a partir de uma desconstrução da mentalidade problemática.
Os grupos minorizados não existem apenas nas datas identitárias, tampouco só quando são vítimas de agressões. São intelectuais que podem e devem ser chamados para falar de qualquer coisa, são potentes para além do marcador que impuseram sobre eles.
Sobre nós, que agora também, enquanto jornalistas, ocupamos as ondas do rádio, as linhas da web e as telas da TV na intenção de produzir narrativas que explorem nossa beleza, inteligência, força e capacidade de olhar o mundo sob uma outra lógica. Lutamos por espaços e estamos cada vez mais presentes.
Iniciativas que reparam
A Rádio CBN Paraíba entendeu, há mais de um ano atrás, que os meios tradicionais de imprensa têm uma responsabilidade diante da educação pro futuro e a desconstrução de preconceitos.
Por isso criou a coluna semanal ‘Lugar de Fala’, conduzida por mim, uma jornalista negra, jovem e de origem pobre que se esforça todas as quintas para ampliar visões sobre diversos temas, a respeito de diversidade e Direitos Humanos. Sempre ouvindo, claro, quem tem lugar de fala.
A partir de agora a coluna também será publicada no Jornal da Paraíba. Toda sexta-feira um texto jornalístico opinativo, onde os grupos minorizados são protagonistas e refletem sobre suas dores, desafios e potências.
Para não dizer que não falei das flores, existem propostas contemporâneas onde o foco é reparar e educar as massas sobre o que não pode mais ser reproduzido. A TV Globo criou especiais com denúncias, contação de histórias e celebração da existência de quem cansou de ser vítima.
Falas Negras, Falas da Terra, Falas Femininas, Falas de Orgulho e Falas de Vida trouxeram brasileiras e brasileiros que insistem em resistir. Jornalismo e entretenimento unidos em prol da transformação social. Todos disponíveis no Globoplay.
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